O problema no surrealismo é tudo isto
de velhos cujo maxilar flutuante trota
ao longo de pradarias de memórias inventadas,
ou tudo isto
de novos cujo nervosismo na mão do cigarro
a tremer em uníssono como as divisões do corpo
ora parcialmente de tigre ora parcialmente de lontra
causado (o tremer, digo) por posses húmidas
fugidias em quartos de hotel com papel parede
igual ao de Fawlty Towers ou aos romances de A. Christie,
onde um Salvador jovem desenhou um par de nádegas
à revelia das tias gagas que o vigiam, e indiferente
ao bigode da monalisa ou aos Cristos azulados de Chagall,
bem como ao pulsar troante das figuras geométricas do papel
enquanto marido e mulher se ocupam do planeamento
familiar a prazo de 9 meses, sem desconfiar dos versos
gravados por um Gide de meia idade, sobre o nevoeiro
fastidioso da Londres que somos no romance cordelesco
de Doyle a que assistimos sem palpite que seja,
enquanto para lá das gabardinas, das abas levantadas,
no escuro um barbeiro de Sem Vida
se expande com um jovem guedelhudo
acerca das diatribes epistemológicas de Kierkergaard
esse que teme e treme, esse do Temor e do tremor que,
se me permitem, são as duas figuras geométricas principais
no padrão do papel parede. Mas porque falo eu
do papel parede, perguntas-te, também o desconheço
mas mantém a compostura e os lábios apertados,
não contes a ninguém e, assim, unidos na mesma farsa,
faremos arte: a arte de nem um, nem outro saberem
do que falam ou ouvem, mas que, em sabendo,
seria qualquer coisa de maravilhosamente bela.
O problema, dizia eu, no surrealismo, é não sabermos.
O problema em tudo isto de viagens privadas
(de senso ou lógica)
se poder resumir a um denominador:
a improbabilidade de um esquimó no Gobi
ou a outra de não ser inteligente obreiro
deste logro que vos mantém entretidos e de sobrolho franzido,
há já vai para cima de 30 versos.
António Ramos Pereira