quinta-feira, 20 de março de 2008

I won't fuck us over, I won't fuck this over

para APL

Há muito de retratos a sépia na memória, bigodes impantes de severos coronéis
cuja história, sangue e defeitos transportamos lepidamente;
há muito de livros com páginas dobradas flores recortes
apontamentos a não esquecer
misturados com amostras de perfume, bilhetes de comboio e fotografias
de belas mulheres com volumosos penteados,
(a nossa mãe quando não era nem mãe nem nossa)
a marcar o que concede ao livro, à vida, a mim
(há uma evolução de ordem, reparem)
um efémero traço de inesquecível;

há muito de casas maternas a que se regressa, deixando o casaco e o medo
à entrada, dispostos em simetria, na harmonia que há entre dois instrumentos
de igual função, muito dessa casa onde tudo nos pertence por
os vasos, os álbuns, as cassetes em cima da lareira, a explosão violenta
violácea
da buganvília no jardim, ou da velhice do pai no escritório – e o escritório,
nem uma caneta, mudado. O que me recorda a fala ancestral de 3ª pessoa:
—Está tão mudado,
acusam em murmúrio - esquecendo-me - a gengiva sem raízes da avó e as rugas da avó e as chagas da avó, rosto de, hoje como ontem, abnegação e estúpida pureza

há muito de funerais de província, apressados à chuva
poderosas homenagens a um tio (e há muito de tios na memória)
de quem falsificamos imagens mentais graças às parecenças com outro familiar,
ou outro papel oferecido noutro funeral e iniciado com Oremos.
e ninguém ora, claro.

Há muito de versos mal conseguidos a explicar o que é a memória.
Há muito de tudo isso na memória.

Mas para lá e para cá da memória,
(a memória: região limítrofe suburbanização movimento centrífugo
delimitada por um halo fosforescente como as Nossa Sras. de Fátima se vistas no escuro,
fuga do centro para fora, mudança temporal imposta pelo medo de ser outra vez
E o conforto na certeza de não ser nunca mais.)
há também muito de doenças ortopédicas cafés vertidos pagos à vez
- e com autorização do empregadozinho de gola altinha que muito obrigadinho.

António Ramos Pereira