quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

tinha mãos de jardineiro quando tratava de amor

amanheço dolorosamente, escrevo aquilo que posso e construo-me esta madrugada letra a letra. das palavras que para ti guardo não sei mesmo se qualquer uma delas faz sentido. não importa. há sempre qualquer outra coisa que espreita para nos levar.
rói nas entranhas um fogo assim tão silente. não saber já dizer. não encontrar a palavra mais justa para dizer - e nos olhos
que baixo
na tua presença
há já outra outra cor. outra cor da minha dor.
não é a morte mais silente
que o dia sem ti
nem a noite imponente deslumbre maior
que o céu que dorme nos teus braços
nem o mar véu mais puro
que a tua pele nua



desculpa, mas tenho de te contar. hoje morreu a lúcia. a velha viúva da aldeia (e eu pensei em mim, pensei em ti, assim nesta distância que nunca acaba, nesta morte em vida) quando amanheceu, o corpo e o seu lugar ainda quente cheio das suas mãos, do seu cheiro de mulher velha, dos olhos que alongava sentada na cadeirinha à beira da janela, quando amanheceu, digo, vieram de lá de trás da serra os sobrinhos. trouxeram muitas outra mãos: vestiram-na, deitaram-na no caixão, o terço de latão e perolazinhas fingidas em duas voltas em redor das mãos cruzadas, os sapatos só calçados nas pontinhas dos pés, não cabem, são sapatos de há muitos anos. o cabelos com aquela mise-en-plis que sempre lhe conheci. os caracolinhos muitos fininhos dos rolos, a laca a cheirar a dias de festa. parecia uma menina.
depois, levaram-na para a capela da vila. e quando voltaram, já depois de enterrada, entraram-lhe em casa, com pressa, a sobrinha a perguntar, onde é o contentor do lixo mais perto, e toda tarde foi um vaivém de carregos.

um fartão de coisas boas no lixo, dizem aquelas
outras velhas sentadas no muro à beira da estrada.
meio encolhidas. meio encolhidas já de saudade. a saudade
pode ser uma velhice encarquilhada.
o tempo quase arrependido. pode.

depois, foram embora. sobra um papel colado na janelita da lúcia, vende-se, em letras mal desenhadas.
mais à frente, toda a sua vida despejada na rua.os olhos
de toda a gente a desvelarem
os segredos. a mobília espanhola, negra com florinhas. comprada em badajoz. como é linda
meu amor, como é linda. as gavetas dos anos
cheias desses bilhetinhos
que com a letra toda inclinada para o lado do coração
escrevia: uma só
pergunta:
então o amor é isto? os pratinhos de vidro colorido
em borbotões nas beiras
escaqueirados num caleidoscópio de dias.
os dias de festa
os dias de luto. quando morreu a mãe
quando o tempo apagou os natais
quando as páscoas viram
os seus dias encurtarem e lhe levaram
o tempo de homem. sentada à janela
como quem espera: ha pasado un caballero
- quién sabe por qué pasó!-
y se ha llevado la plaza
con su torre y su balcón,
con su balcón y su dama,
su dama y su blanca flor: os versos decorados
e inscritos num bilhetinho,
como são lindos, meu amor, como são
lindos.
agora já não. manchados com a gordura
de fritos
o lixo dos outros a manchar o antonio
machado. o lixo dos dias
a manchar o seu homem
a sua torre
a sua branca flor. a roupa de enxoval
ainda por estrear,
devassada na boca dos cães, a baba
dos cães como sangue de parto,
a baba dos cães como suor de corpos que ali não
se deitaram. as rendas
os intermináveis biquinhos de renda
para arrematar as toalhas. os retalhos.

a vida toda em retalhos coloridos. uns tão escuros
outra os gritos coloridos
do amor em pé, espreitando quando
ela lavava os cabelos. nunca cortes
esse cabelo, lúcia, nunca,
a arca de pés
e cantos em latão amarelo. as roupas de casa. a casa
toda em roupas. a casa toda em roupas
macias
cheirando a alfazema e maçãs verdes.

este é o cheiro para a nossa filha, diz a lúcia,
mas a filha não vem. nem ela nem ninguém.

o psiché meio manco:
o rapaz dos correios de nelas
no sépia desbotado da moldura
do fotógrafo de cidade
- há tantos tantos demasiados anos -
o vestido domingueiro e o serviço de copos
comprado às prestações ao vendedor de enciclopédias

esvoaçam os lençóis da noite em que se deitaram juntos
o bordado no cabeção: amizade
um - a - todo intrincado de florinhas
e folhas. a primavera do amor
na primavera do corpo.

um homem de uma mulher pode ocupar toda a casa
sem nunca o saber. em todas as coisas que uma casa
pode ter
uma mulher pode refazer a cada dia
o seu homem
e deitá-lo
sentá-lo
aninhá-lo entre as sertãs e os pratos da loiça de viana
entre as linhas de coser e
as cortininhas de chita que o tempo
embolorece. há um homem
a dormir nesta cama
muito depois de o homem
partir.

senhores, nem a roupa quiseram, dizem as velhas sentadas
encolhidas
encolhidas. as palavras cheias de rugas
os olhos aguados. cataratas do tempo
desaguando em espanto. senhores,
nem a roupa do corpo quiseram guardar.

baixo os olhos. quando a minha morte vier
que venha escandalosa
repentina
e me roube a memória dessa frase
toda inclinada
para o lado do coração: então o amor
é isto?

não quero saber nem mais uma palavra.
nem mais uma.

que é feito do rapaz dos correios em nelas
dos beijos de olhos
dos sorrisos de mãos
e do amor escorrendo pelas pernas: quando passou
os pirinéus
o amor era essa palavra
roubada nas escadas
do prédio
o ventre espantado
um calor crescente e a água da boca.
a mãe dormia e embalava nos braços
uma menina. ainda ela
ainda ele
e um amor todo inclinado para o lado do coração. é sempre daqui que nascemos
para o mundo
sempre os olhos abertos inúteis
quase cegos

e é sempre aqui que nos morremos
com os sons a deslizarem lentamente da boca
uma casa aos pés guardando toda a existência
o amor que se fez
o amor que nos viajou por dentro do corpo.

é sempre assim que nos morremos:
olhos
abertos
quase inúteis: cegos somos já
a todo o mundo. quando vier a minha morte
quero-me assim
muda olhos vazados
escondendo entre os ossos esse mistério
do lado coração e
todos os momentos em que me viajei por dentro. e de ti.

o silêncio todo do mundo
entre as mãos
cruzadas no peito
um terço de perolazinhas de fingir
o latão da nossa senhora de fátima
os sapatos na pontinha dos pés
e uma roupa por estrear: assim quero também eu
receber a minha morte: menina
de olhos cegos
e a pureza de um coração
inclinado no corpo
para o lado em que o mundo
não venha acordar-me.: então
o amor
é isto?


(talvez muito de ti viva em mim
assim nesta clausura em que me
defino quando fecho os olhos e
um cheiro a mofo me inebria

chiu...)



o amor morte
branca
de perolazinhas fingidas
latão de nossa senhora
a sossegar duas mãos cruzadas
no lado mais inclinado.




título do capinador de palavras, chico buarque


Marta Caldeira