1.
naquele tempo falavas muito de suicídio simbólico, da queda livre num qualquer buraco, desses negros da construção e lamacentas obrinhas de deus e do público. os operários, na pausa do almoço, entre garrafas de plástico tinto e febras assadas nas fogueiras de barrote, arrotando o poema do vinicius. e eu, nem sei bem porquê, olhava-me por dentro com banda sonora do viegas e anos oitenta e o país esventrado de alcatrão e luminárias e achava a tua ideia um enorme monumento ao lugar comum da morte.
2.
confesso-te que já não é essa guerra ou o excesso de UV ou a falta do ar nos alvéolos brônquicos, ou o PIB, ou a física quântica ou ainda o último livro do auster, não é nada disso que me assola por estes dias. é um facto que as nossas mãos estão tão cravadas de calos e desses pregos corroídos pela ferrugem dos anos, dois mil e tantos, e todavia a ti sobram-te dedos e dedos, ou palavras e mansidões. não possuis, como eu, esse inusitado desejo de perfume de gardénias, não que alguma vez eu possuísse uma que fosse, ou a vontade intrincada de um sexo feito à medida de um tango. submeto-me à ideia de que todos somos muito mais iguais na diferença das pequenezas e ignoro se este é o meu caminho para a pantagónia, onde dizes tu, as vistas tocam o inalcançável. não, o que me preocupa hoje, neste dia chuviscoso e de bruma rala e fria, é ter acabado todas as recargas vénus.
3.
todavia, ela move-se, dizias, e deixa um rasto se bem que não glorioso, ainda assim como que a cauda de poeira luminosa de uma estrela de natal. todavia, ela irrompe numa qualquer parte, de noite, de preferência, e coloca-se bem no centro da mesa, onde antes, minutos, segundos antes, despontava um magnífico arranjo floral e os convidados, em redor, que tagarelavam sobre o perfume das magnólias e das orquídeas, repartem-se agora pão, despojos de dias felizes, ou não, só dias,
gritos e a morte, servida fria como fatias de salame italiano ou mortadela importada. rola um
olho,
um enorme e único olho, uma mão, a mãe que embala o berço, e guernica! não deixo de sentir que tal como tu, pablo, ela move-se, deixa rasto luminoso como uma estrela de natal e …
4.
(subverto este dia chuviscoso e de bruma rala e fria inoculando-me uma palavra: adjectivante, não consubstancial, não essencial: sou da natureza de uma paisagem patagónica em que, arrancadas as rotas parabólicas da pescaria dominical, sobra uma única e ilimitada linha: desconfio que morrerei agora e aqui, de olhos bem abertos, sob a bota militar de algum padeiro universal, mas, que queres, ambiciono a paz dos adjectivos justos e a beleza apressada de uma planura, e fujo, fujo sempre das mãos que amassam diabos e os fazem fermentar lenta, lentamente no quente aconchego do leite materno
:vou-me embora para a patagónia, talvez lá seja ilimitadamente filha)
5.
é que tenho uma cadela rosinha, é preta e desconfio do livre arbítrio
6.
e não é tanto as deglutições rápidas da hóstia familiar, nem o fast-food simplex do acto de contricção abreviado, nem tão pouco o pisca-pisca dos salve-rainha e dos piqueniques de domingo, o que me perturba é a carne ser crime e o crime ser tão minha carne como os ossos. muitas vezes te digo,
lembras-te, dói-me
o esqueleto.
no exacto ponto em que dói descubro, não raras vezes, o aparecimento de mais uma calcificação. alimenta-se da minha inércia, da ausência de gestos que suavizem a minha humanidade. e o crime alonga-se como petrificação da
vontade.
que queres, é tão mais fácil viver
assim.
7.
e, no entanto, na fila néon do supermercado muitas vezes sou assaltada pela dúvida: compro ou não compro um pacote promocional da têvecabo, sou ou não sou
humanamente possível?
8.
é, de facto, já não somos os mesmos – nada desses mistérios que trazíamos agarrados aos ossos permanece à luz dos dias- os nomes que proferíamos ao amar há muito se esgotaram. as mãos vão ganhando a consistência da terra e da penumbra e a água do sangue escorre-nos na água dos olhos. é um facto que os pés que aqui me trouxeram calcam noites e noites e histórias e nomes. great golden copulations, dizes, dessas capazes de amassar a blasfémia com a água do corpo e levedar-nos por dentro um outro e renovado corpo
eu digo, we need…
9.
o que é um verdadeiro milagre é tu existires, e tu não seres
eu
10.
palavras cruzadas: dismenia/dismnésia.
ai,
e os cremes anti-age da lâncome e as arestas tenebrosas nas paredes vazias da memória
11.
regresso a casa, ao lugar de mim e escrevo para o esconjuro acontecer. como, por exemplo
aqui na minha aldeia há dois poetas, um é o cristo pescador de percebes e o outro é o cavador, poeta das hortas e das horas dormentes. mas o maior poeta que conheço é a minha avó
:chama vergas à cadeira de onde os olhos se evadem
para o corpo criar metáforas
e eu,
no esconjuro do próprio nome que me pertence
digo-me de anjos, de peixes alados no meu ventre e
de mãos
transgredindo a progressão das horas.
vou-me embora para a patagónia. levo a minha avó comigo
12.
ou
de manhãzinha, antes de todos acordarem, vou por esse caminho à tua beira (tu não sabes) a que chamei babilónia. pingos de luz escorrem dos aloés orvalhados e a minha cadela rosinha vai de nariz empinado. quando passa uma gaivota há gritos. de gaivotas e de sal estalando nas rochas e lá no fundo, sabes, vê-se o cabo da roca que é só o ponto mais
ocidental.
seguem-me os boney eme
e a importância de ter nascido em mil novecentos e sessenta e dois, na áfrica nossa e ter um pai que gritava em pesadelos de noites húmidas e antes ser portuguesa da guerra dos turras. para provar que não sou escrevo-te esta carta
PMP e lavo bem as mãos
depois de cagar.
13.
é só porque,
de amiúde, os meus olhos descobrem vaga-lumes nas arribas: incendeiam o céu de verões-fátuos e ocorre-me sentar, deixar os bichos sairem das tocas e esperar a queda de estrelas e meninos. zurrem vozes que chegam a esse céu e eu, devagarzinho, começo um novo
tricot
14.
às banalidades de uns e de outros juntemos-lhes essas que os próprios desconhecem
:paixão, morte, milagres de que o mundo se desfaz na razão de cada dia. chamemos-lhes
provisoriamente vida
15.
eu quero
proferir todos os nomes como quem desata umas asas
16.
oxalá.
Marta Caldeira
naquele tempo falavas muito de suicídio simbólico, da queda livre num qualquer buraco, desses negros da construção e lamacentas obrinhas de deus e do público. os operários, na pausa do almoço, entre garrafas de plástico tinto e febras assadas nas fogueiras de barrote, arrotando o poema do vinicius. e eu, nem sei bem porquê, olhava-me por dentro com banda sonora do viegas e anos oitenta e o país esventrado de alcatrão e luminárias e achava a tua ideia um enorme monumento ao lugar comum da morte.
2.
confesso-te que já não é essa guerra ou o excesso de UV ou a falta do ar nos alvéolos brônquicos, ou o PIB, ou a física quântica ou ainda o último livro do auster, não é nada disso que me assola por estes dias. é um facto que as nossas mãos estão tão cravadas de calos e desses pregos corroídos pela ferrugem dos anos, dois mil e tantos, e todavia a ti sobram-te dedos e dedos, ou palavras e mansidões. não possuis, como eu, esse inusitado desejo de perfume de gardénias, não que alguma vez eu possuísse uma que fosse, ou a vontade intrincada de um sexo feito à medida de um tango. submeto-me à ideia de que todos somos muito mais iguais na diferença das pequenezas e ignoro se este é o meu caminho para a pantagónia, onde dizes tu, as vistas tocam o inalcançável. não, o que me preocupa hoje, neste dia chuviscoso e de bruma rala e fria, é ter acabado todas as recargas vénus.
3.
todavia, ela move-se, dizias, e deixa um rasto se bem que não glorioso, ainda assim como que a cauda de poeira luminosa de uma estrela de natal. todavia, ela irrompe numa qualquer parte, de noite, de preferência, e coloca-se bem no centro da mesa, onde antes, minutos, segundos antes, despontava um magnífico arranjo floral e os convidados, em redor, que tagarelavam sobre o perfume das magnólias e das orquídeas, repartem-se agora pão, despojos de dias felizes, ou não, só dias,
gritos e a morte, servida fria como fatias de salame italiano ou mortadela importada. rola um
olho,
um enorme e único olho, uma mão, a mãe que embala o berço, e guernica! não deixo de sentir que tal como tu, pablo, ela move-se, deixa rasto luminoso como uma estrela de natal e …
4.
(subverto este dia chuviscoso e de bruma rala e fria inoculando-me uma palavra: adjectivante, não consubstancial, não essencial: sou da natureza de uma paisagem patagónica em que, arrancadas as rotas parabólicas da pescaria dominical, sobra uma única e ilimitada linha: desconfio que morrerei agora e aqui, de olhos bem abertos, sob a bota militar de algum padeiro universal, mas, que queres, ambiciono a paz dos adjectivos justos e a beleza apressada de uma planura, e fujo, fujo sempre das mãos que amassam diabos e os fazem fermentar lenta, lentamente no quente aconchego do leite materno
:vou-me embora para a patagónia, talvez lá seja ilimitadamente filha)
5.
é que tenho uma cadela rosinha, é preta e desconfio do livre arbítrio
6.
e não é tanto as deglutições rápidas da hóstia familiar, nem o fast-food simplex do acto de contricção abreviado, nem tão pouco o pisca-pisca dos salve-rainha e dos piqueniques de domingo, o que me perturba é a carne ser crime e o crime ser tão minha carne como os ossos. muitas vezes te digo,
lembras-te, dói-me
o esqueleto.
no exacto ponto em que dói descubro, não raras vezes, o aparecimento de mais uma calcificação. alimenta-se da minha inércia, da ausência de gestos que suavizem a minha humanidade. e o crime alonga-se como petrificação da
vontade.
que queres, é tão mais fácil viver
assim.
7.
e, no entanto, na fila néon do supermercado muitas vezes sou assaltada pela dúvida: compro ou não compro um pacote promocional da têvecabo, sou ou não sou
humanamente possível?
8.
é, de facto, já não somos os mesmos – nada desses mistérios que trazíamos agarrados aos ossos permanece à luz dos dias- os nomes que proferíamos ao amar há muito se esgotaram. as mãos vão ganhando a consistência da terra e da penumbra e a água do sangue escorre-nos na água dos olhos. é um facto que os pés que aqui me trouxeram calcam noites e noites e histórias e nomes. great golden copulations, dizes, dessas capazes de amassar a blasfémia com a água do corpo e levedar-nos por dentro um outro e renovado corpo
eu digo, we need…
9.
o que é um verdadeiro milagre é tu existires, e tu não seres
eu
10.
palavras cruzadas: dismenia/dismnésia.
ai,
e os cremes anti-age da lâncome e as arestas tenebrosas nas paredes vazias da memória
11.
regresso a casa, ao lugar de mim e escrevo para o esconjuro acontecer. como, por exemplo
aqui na minha aldeia há dois poetas, um é o cristo pescador de percebes e o outro é o cavador, poeta das hortas e das horas dormentes. mas o maior poeta que conheço é a minha avó
:chama vergas à cadeira de onde os olhos se evadem
para o corpo criar metáforas
e eu,
no esconjuro do próprio nome que me pertence
digo-me de anjos, de peixes alados no meu ventre e
de mãos
transgredindo a progressão das horas.
vou-me embora para a patagónia. levo a minha avó comigo
12.
ou
de manhãzinha, antes de todos acordarem, vou por esse caminho à tua beira (tu não sabes) a que chamei babilónia. pingos de luz escorrem dos aloés orvalhados e a minha cadela rosinha vai de nariz empinado. quando passa uma gaivota há gritos. de gaivotas e de sal estalando nas rochas e lá no fundo, sabes, vê-se o cabo da roca que é só o ponto mais
ocidental.
seguem-me os boney eme
e a importância de ter nascido em mil novecentos e sessenta e dois, na áfrica nossa e ter um pai que gritava em pesadelos de noites húmidas e antes ser portuguesa da guerra dos turras. para provar que não sou escrevo-te esta carta
PMP e lavo bem as mãos
depois de cagar.
13.
é só porque,
de amiúde, os meus olhos descobrem vaga-lumes nas arribas: incendeiam o céu de verões-fátuos e ocorre-me sentar, deixar os bichos sairem das tocas e esperar a queda de estrelas e meninos. zurrem vozes que chegam a esse céu e eu, devagarzinho, começo um novo
tricot
14.
às banalidades de uns e de outros juntemos-lhes essas que os próprios desconhecem
:paixão, morte, milagres de que o mundo se desfaz na razão de cada dia. chamemos-lhes
provisoriamente vida
15.
eu quero
proferir todos os nomes como quem desata umas asas
16.
oxalá.
Marta Caldeira