quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Rol de pequenos e fortuitos milagres. Com vista para a Patagónia

1.
naquele tempo falavas muito de suicídio simbólico, da queda livre num qualquer buraco, desses negros da construção e lamacentas obrinhas de deus e do público. os operários, na pausa do almoço, entre garrafas de plástico tinto e febras assadas nas fogueiras de barrote, arrotando o poema do vinicius. e eu, nem sei bem porquê, olhava-me por dentro com banda sonora do viegas e anos oitenta e o país esventrado de alcatrão e luminárias e achava a tua ideia um enorme monumento ao lugar comum da morte.


2.
confesso-te que já não é essa guerra ou o excesso de UV ou a falta do ar nos alvéolos brônquicos, ou o PIB, ou a física quântica ou ainda o último livro do auster, não é nada disso que me assola por estes dias. é um facto que as nossas mãos estão tão cravadas de calos e desses pregos corroídos pela ferrugem dos anos, dois mil e tantos, e todavia a ti sobram-te dedos e dedos, ou palavras e mansidões. não possuis, como eu, esse inusitado desejo de perfume de gardénias, não que alguma vez eu possuísse uma que fosse, ou a vontade intrincada de um sexo feito à medida de um tango. submeto-me à ideia de que todos somos muito mais iguais na diferença das pequenezas e ignoro se este é o meu caminho para a pantagónia, onde dizes tu, as vistas tocam o inalcançável. não, o que me preocupa hoje, neste dia chuviscoso e de bruma rala e fria, é ter acabado todas as recargas vénus.


3.
todavia, ela move-se, dizias, e deixa um rasto se bem que não glorioso, ainda assim como que a cauda de poeira luminosa de uma estrela de natal. todavia, ela irrompe numa qualquer parte, de noite, de preferência, e coloca-se bem no centro da mesa, onde antes, minutos, segundos antes, despontava um magnífico arranjo floral e os convidados, em redor, que tagarelavam sobre o perfume das magnólias e das orquídeas, repartem-se agora pão, despojos de dias felizes, ou não, só dias,
gritos e a morte, servida fria como fatias de salame italiano ou mortadela importada. rola um
olho,
um enorme e único olho, uma mão, a mãe que embala o berço, e guernica! não deixo de sentir que tal como tu, pablo, ela move-se, deixa rasto luminoso como uma estrela de natal e …


4.
(subverto este dia chuviscoso e de bruma rala e fria inoculando-me uma palavra: adjectivante, não consubstancial, não essencial: sou da natureza de uma paisagem patagónica em que, arrancadas as rotas parabólicas da pescaria dominical, sobra uma única e ilimitada linha: desconfio que morrerei agora e aqui, de olhos bem abertos, sob a bota militar de algum padeiro universal, mas, que queres, ambiciono a paz dos adjectivos justos e a beleza apressada de uma planura, e fujo, fujo sempre das mãos que amassam diabos e os fazem fermentar lenta, lentamente no quente aconchego do leite materno
:vou-me embora para a patagónia, talvez lá seja ilimitadamente filha)


5.
é que tenho uma cadela rosinha, é preta e desconfio do livre arbítrio


6.
e não é tanto as deglutições rápidas da hóstia familiar, nem o fast-food simplex do acto de contricção abreviado, nem tão pouco o pisca-pisca dos salve-rainha e dos piqueniques de domingo, o que me perturba é a carne ser crime e o crime ser tão minha carne como os ossos. muitas vezes te digo,
lembras-te, dói-me
o esqueleto.
no exacto ponto em que dói descubro, não raras vezes, o aparecimento de mais uma calcificação. alimenta-se da minha inércia, da ausência de gestos que suavizem a minha humanidade. e o crime alonga-se como petrificação da
vontade.
que queres, é tão mais fácil viver
assim.


7.
e, no entanto, na fila néon do supermercado muitas vezes sou assaltada pela dúvida: compro ou não compro um pacote promocional da têvecabo, sou ou não sou
humanamente possível?


8.
é, de facto, já não somos os mesmos – nada desses mistérios que trazíamos agarrados aos ossos permanece à luz dos dias- os nomes que proferíamos ao amar há muito se esgotaram. as mãos vão ganhando a consistência da terra e da penumbra e a água do sangue escorre-nos na água dos olhos. é um facto que os pés que aqui me trouxeram calcam noites e noites e histórias e nomes. great golden copulations, dizes, dessas capazes de amassar a blasfémia com a água do corpo e levedar-nos por dentro um outro e renovado corpo
eu digo, we need…


9.
o que é um verdadeiro milagre é tu existires, e tu não seres
eu


10.
palavras cruzadas: dismenia/dismnésia.
ai,
e os cremes anti-age da lâncome e as arestas tenebrosas nas paredes vazias da memória


11.
regresso a casa, ao lugar de mim e escrevo para o esconjuro acontecer. como, por exemplo
aqui na minha aldeia há dois poetas, um é o cristo pescador de percebes e o outro é o cavador, poeta das hortas e das horas dormentes. mas o maior poeta que conheço é a minha avó
:chama vergas à cadeira de onde os olhos se evadem
para o corpo criar metáforas
e eu,
no esconjuro do próprio nome que me pertence
digo-me de anjos, de peixes alados no meu ventre e
de mãos
transgredindo a progressão das horas.
vou-me embora para a patagónia. levo a minha avó comigo



12.
ou
de manhãzinha, antes de todos acordarem, vou por esse caminho à tua beira (tu não sabes) a que chamei babilónia. pingos de luz escorrem dos aloés orvalhados e a minha cadela rosinha vai de nariz empinado. quando passa uma gaivota há gritos. de gaivotas e de sal estalando nas rochas e lá no fundo, sabes, vê-se o cabo da roca que é só o ponto mais

ocidental.

seguem-me os boney eme
e a importância de ter nascido em mil novecentos e sessenta e dois, na áfrica nossa e ter um pai que gritava em pesadelos de noites húmidas e antes ser portuguesa da guerra dos turras. para provar que não sou escrevo-te esta carta
PMP e lavo bem as mãos
depois de cagar.


13.
é só porque,
de amiúde, os meus olhos descobrem vaga-lumes nas arribas: incendeiam o céu de verões-fátuos e ocorre-me sentar, deixar os bichos sairem das tocas e esperar a queda de estrelas e meninos. zurrem vozes que chegam a esse céu e eu, devagarzinho, começo um novo
tricot


14.
às banalidades de uns e de outros juntemos-lhes essas que os próprios desconhecem
:paixão, morte, milagres de que o mundo se desfaz na razão de cada dia. chamemos-lhes
provisoriamente vida



15.
eu quero
proferir todos os nomes como quem desata umas asas


16.
oxalá.


Marta Caldeira