segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

O poema que Proust não escreveu

Como quem espaça a luz na divisão
escondida da casa subterrânea,
como quem colhe a sonolência
de um jardim em fim de tarde,
de mãos abertas,
ou a lassidão da tília abandonada ao Inverno,
de mãos abertas, como pedinte que espera a moeda do
passageiro que não passa, a brisa inesperada de
uma palavra sem pátria ou língua nas nervuras do dedo.
Como quem emprateleira os tons
e meios tons do piano de cauda
solta, a rabear Chopin,
como cego que espera na vinda do correio
um punho novo e fértil que vença a alvura
da folha que ele vê apenas com a fervência do sangue
(a batida cardíaca é dada pelo capataz
que impõe a diferenciação rítmica do verbo
sem ritmo, sem ritmo)

como quem pergunta ao avô
sobre memórias dele por ele esquecidas
que a neta guarda agora no seu regaço
ou junto ao peito, tanto faz, guarda
como património seu,
como prova de que a memória
(à semelhança ou contrário de tudo isto)
não tem de ser falsa.

António Ramos Pereira