quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Acordo relativo à ortografia dos nossos silêncios

¿Qué es la vida? Una ilusión,
una sombra, una ficción,
y el mayor bien es pequeño:
que toda la vida es sueño,
y los sueños, sueños son.

Pedro Caldéron de la Barca

mantemos por perto pessoas de estimação que
vamos comprando com elogios sem preço e alguma flexibilidade,
é preciso aturar-lhes a grosseria dos comportamentos,
suportamos esta convivência
mais para evitarmos ter que nos encarar a sós
conversamos
e trocamos sorrisos moles, impressões gratuitas
sobre um mundo que nos quer e não nos quer
temos em comum um apego sério
por tranquilizantes, soporíferos e o álcool
que às vezes nos faz ver a dobrar, umas vezes para melhor
e outras para pior
os alucinogénios deixaram de guardar
as portas da percepção, tudo se tornou
um pouco cínico, levemente caminhamos com um aperto
que se vem tornando um estranho familiar
desesperados
confirmamos na expressão uns dos outros
o nosso próprio fatalismo, muito deixou já de valer a pena
e os espelhos fazem parte de uma noção de etiqueta
que já não nos interessa
houve quem tenha proposto uma geração y
depois da x e depois de todas as outras que nos largaram
à beira do precipício, não faz muita diferença o rótulo
somos a prole dos semi-abortos liberais
das facções cashing
persuadidos pelo conforto e segurança
das operações com números,
o contabilista tornou-se o psicanalista moderno,
ironicamente, ou não, agora também já oiço falar
de uma geração revoltada
simplesmente porque não tem a sua revolução
pessoas singulares num émulo plural
casadas e divorciadas e casadas
ainda à procura de alguém que as complete
consolados pela liberdade para praticar actos
consonantes com a hipnose comercial em alternativa
à decomposição no sofá em frente à televisão
todos contentes (e eu também)
com um vazio no lugar da esperança
críticos de todas as iniciativas sociais
uns preparam-se o melhor que sabem
para enfrentar tudo e todos como concorrência
outros desistem e derivam
de crédito em crédito
autênticos tarzans baloiçando na selva com a liana ao pescoço,
o futuro é a noite que virá hoje, a verdade só importa
se não houver como lhe escapar
de resto somos todos uns vencedores
contra os falhados que podíamos ser
e quem escreve um poema tanto pode falar disto
como pode falar da vontade que tem
de ter o que escrever, visto que
quem decide o que se publica
são os mesmos tipos
cansados de se publicarem
e de ninguém ter paciência para os ler

Diogo Vaz Pinto