quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

O penúltimo poema de amor

empurro a porta com o peso do corpo, cada vez mais pesado
da idade, entre outras desculpas não tão gordas,
o mecanismo das mãos faz-me uma estimativa
aproximando as horas e os cigarros,
só cabe um dedo no maço, estou satisfeito
deixo-me ir, sonâmbulo, como que tele-guiado
com headphones nos ouvidos, sem chegar a premir o play,
contento-me com o sinal de estática por uma questão estética
um visual que se inspira numa ideia fixa que eu tenho,
chamo-lhe ausência
o elevador chega, desço ao zero, à rua, ao trânsito
ultrapassando outras dessas coisas que conjugam o dia-a-dia,
entro no parque de estacionamento, pago claro
e daí sou entregue a um desses paraísos artificiais
onde os corpos mais óbvios, como os prefiro nestes meus poemas,
se movem animados por uma corrente alternativa, doses necessárias
de euforia, essa droga típica dos meus suicidas / o que seria de mim, aliás,
sem a paixão que lhes tenho -
como gosto de os ver ajuntados
naquela agitação de ideias, crimes tão puros, asfixiando-se
face à montra de uma loja cheia de nuvens onde planam
jóias de um brilho que deixa no lixo os corações

vou-me concentrando nesse êxtase e parece
que lhes adivinho as ordinarices com que se massacram,
chantagens emocionais, todo um enredo de agressões doentias
e eu sinto-me suar de ansiedade
quando com o pé direito entram na loja,
são prontamente abordados por um sorriso
prenhe de violência a que entregam aquele olhar das vítimas
e eu cá fora inclino-me, sei que está prestes a acontecer
quando pedem para ver mais de perto e
depois, chega aquela pausa,
o estremecer das pálpebras
a alteração do ritmo cardíaco
uma dor demasiado certeira
a inquietação e finalmente
leio nos lábios aquela variação triste de curtas palavras,
quando a empregada se vira e fecha a luz, já é tarde demais
oiço um disparo e afasto-me

pessoalmente gosto dos relógios o mais estupidamente caros possível,
aqueles bem exuberantes, os que melhor disfarçam a espiral
por onde descende uma vida, também gosto dos perfumes,
desde os anúncios à embalagem, o aparato todo,
o cheiro em si já não me diz muito,
prefiro o odor lento do envelhecimento

gosto das promessas, dos segredos, dos truques,
das promoções e acima de tudo das ofertas, isso é mesmo
o que mais gosto / gosto dos meus corpos assim, óbvios,
gosto de os ver dançar ao ritmo desta demência
que se torna tão certa e previsível,
gosto de como tiram pedaços do coração
gosto muito de os ver cair, e sobretudo gosto de me desviar
naquele último momento de vertigem antes de atingirem o chão.


Diogo Vaz Pinto