sexta-feira, 22 de maio de 2009

CRIATURA 3

Texto lido na apresentação da revista criatura n.º3 – da autoria de Rosa Maria Martelo.

Apesar de ser uma publicação periódica, numerada, que reúne vários autores e mantém uma periodicidade até agora bastante regular, Criatura diverge da estrutura habitual das revistas, cruzando-a com o formato dos livros de autoria colectiva. E, nisto, é provável que reflicta um contacto com a poesia certamente marcado pelos novos hábitos de publicação e leitura criados pela internet, embora, no seu caso, a publicação em papel aponte outro caminho, não contraditório com esse, mas antes cumulativo.

Os três números da Revista até agora publicados apresentam a mesma estrutura. Todos abrem com um pequeno texto que podemos aproximar de uma nota editorial ou de abertura e terminam com um poema que, embora diferente de número para número, mantém sempre o mesmo título, “Notal Final”. Nenhum desses dois textos é assinado, e todos têm como tema a escrita, a poesia, ou a própria Criatura. Entre esses textos, de abertura e fecho, o corpo da revista é determinado pela ordenação alfabética dos nomes dos colaboradores de cada número, correspondendo a colaboração de cada um dos autores a uma espécie de secção. Não há qualquer imagem, nem sequer na capa, que apenas varia na cor, e as cores utilizadas não chamam a atenção a não ser pela sua discrição: preto no primeiro número, castanho no segundo, cinzento no terceiro. Na capa, só uma palavra: Criatura. Na página de rosto, repete-se o nome da revista, seguido do número, do mês e do ano. Só pelo cólofon é possível saber que a revista é organizada pelo Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa com o apoio da Associação Académica da Reitoria da Universidade de Lisboa, sendo seus directores Ana M. P. Antunes, David Teles Pereira e Diogo Vaz Pinto. A revista não tem índice.

Não são pormenores sem importância, estes que acabo de referir. Há entre eles uma grande coerência, e, de resto, alguns destes “pormenores” foram apontados por Manuel de Freitas, logo na recensão que fez ao primeiro número. No seu conjunto, eles reiteram o quanto esta é uma CRIATURA de papel é VERBAL, única e exclusivamente. Só é possível falar de imagens, na revista, tendo em conta imagens verbais como a que está presente no nome, Criatura, que as três notas prévias retomam para sugerir a chegada e as possibilidades de metamorfose de um SER EM ESCRITA, um ser que se autonomiza de quem o cria, precisamente por ser criação verbal.

Gostaria de acentuar esta condição exclusivamente verbal de Criatura. A revista dialoga com outras linguagens artísticas (por exemplo, com o cinema ou com a pintura), mas é sempre no contexto do discurso verbal que esse diálogo se vai estabelecer. Os seus textos citam por vezes imagens visuais, na verdade até evocam com frequência um mundo saturado de imagens visuais. E todavia, se Criatura fala delas (e fala), o certo é que também interpõe alguma distância entre o que ela é e aquilo que tematiza. Uma distância talvez crítica, talvez reflexiva, que a afasta da prevalência do visual e das muitas agressões visuais de que é feito o mundo em que vivemos.

Eis, portanto, uma revista que QUER SER LIDA, e lida apenas. Que se recusa a ser vista, naquela forma mais imediata e mais rápida em que uma publicação com imagem se dá a ver e se deixa folhear. Uma revista que exige um tempo mais lento, que é ÚNICA E EXCLUSIVAMENTE o da leitura. Talvez seja por isso que ela nunca apresenta o seu conteúdo através de um índice: o leitor ou entra e lê, ou, caso não queira ler, simplesmente não entra. Ou entra mal, pois não percebe bem a configuração da revista, já que não há uma página em que a direcção, a estrutura do número, os conteúdos e os nomes dos colaboradores sejam apresentados conjuntamente. E no entanto, é assim, mas não apenas assim. Quem procurar a revista na internet, encontrará um blog que inclui imagens, registos audio dos poemas, listas com os colaboradores de cada número e as críticas de que a revista tem sido objecto. E, de facto, há também essa outra face, esse outro modo de diálogo, até porque grande parte dos colaboradores de Criatura usam os blogs para se publicarem e para discutirem os seus textos antes da publicação em papel.

Estas características estruturais da revista podem ser colocadas em paralelo com uma questão levantada há pouco tempo por Emília Pinto de Almeida no Dossier sobre revistas literárias publicadas em papel que organizou para uma outra revista recente, Callema (nº 5, Nov. de 2008), no qual defende que, hoje, “o gesto de publicar uma revista (...) [em papel] diria respeito a um certo modo de encarar o tempo, e nomeadamente, a actualidade”, traduzindo-se num “movimento de desaceleração e diferimento relativamente à velocidade da circulação de informação”. Ora, eu creio que a total recusa da imagem visual nesta Criatura de papel tem tudo a ver com a reivindicação de um tempo essencialmente lento, esse tempo da escrita e da leitura, de algum modo lateral à dinâmica da sociedade de informação. Assim, suponho que as características formais da revista radicalizam a um ponto extremo aquele “imperativo de desaceleração” de que fala Silvina Rodrigues Lopes no dossier organizado por Emília Pinto de Almeida. Olhando para trás, lembro-me de certas passagens da poesia de Al Berto, nas quais é sempre o mundo que é vertiginoso, enquanto a escrita serve para suster essa vertigem e dar lugar à emergência de um tempo que resiste à velocidade.

Neste terceiro número de Criatura, com onze colaboradores, dois dos quais espanhóis, traduzidos por David Teles Pereira, num dos casos em colaboração com Luís Filipe Parrado, esta questão surge de modo explícito várias vezes. Num dos poemas de António Ramos Pereira, “Rosebud”, é formulada assim:

(...)

Uma corrida, com ou sem calças à boca-de-sino, vale menos

se entrar para o livro de records: o relativismo deve ser evitado

e de qualquer modo não é a velocidade que nos anima.

Ao contrário, por culpa dela só trago comigo o início e o fim

da corrida, entre eles, nada senão uma mancha esfumada:

(...) (12)

No poema, esta corrida na estação de Orsay (que, na realidade, é agora um museu) parece ser uma alegoria da doença contemporânea da velocidade, devoradora de todos os trajectos, à qual Paul Virilio chamou poluição dromosférica (de dromos, corrida). Em “Loucura”, Beatriz Hierro Lopes também equaciona a mesma questão, embora num outro plano:

A informação que passa entre os meus neurónios atinge uma velocidade excessiva. Resumamos: não sei parar. Não consigo parar. Organicamente estou viciada em alta-velocidade. (19)

Com respeito a Criatura, um ponto que me parece importante é o modo como a revista nasce e se propõe crescer sem precisar de equacionar o (supostamente difícil) lugar da poesia no contexto desta temporalidade adversa. É possível ler as notas de abertura dos três números da revista como partes de um mesmo texto in progress e observar que esse texto é essencialmente “expectante”: ele espera que, criando, se faça surgir uma criatura que não parte de nenhum programa, mas que simplesmente se procura, “sem reclamar uma posição fixa” (nº1), confiando na possibilidade de descobrir em si mesma a sua justificação (nº2) e antecipando uma “promessa de contágio” (nº3). Essa condição expectante é reequacionada depois nos três poemas em “Nota Final”, que insistem na vontade de diálogo e de encontro (nº1 e 3) e descrevem a poesia como “um projecto de beleza”, “um excesso libertador” (nº2). Apesar de a “Nota final” do segundo número reconhecer explicitamente que “(...) a poesia / (...) não interessa, não é necessária / não convém nem é útil”, a mesma nota também sugere que a poesia pode muito bem com isso, “não precisa que acreditem nela”. No contexto dessa temporalidade adversa, ela não faz concessões: cria, cria-se, e redesenha um território que lhe é próprio, particular, específico. “[Q]ualquer vagar é de muita pressa e toda a rapidez / é lenta”, avisava Herberto Helder. Aos que acham que esse tempo lento nada tem a ver com velocidade e vertigem, Criatura parece responder com um simples encolher de ombros. De resto, há muita deambulação urbana nestes poemas: a movimentação nos transportes colectivos, idas e vindas entre a multidão, vista, por exemplo, do lado de cá da “barreira de som” criada pelos auscultadores, como acontece num poema de Cláudia Santos Silva (41).

A busca de interioridade, procurada do lado “de cá” dessa e de outras barreiras, bem como a apropriação integradora do desfilar das imagens e da experiência contemporânea da velocidade são tópicos importantes na revista. Mas, paralelamente, existe uma grande atenção ao mundo, em Criatura, passando da raiva, ao desalento, do desalento ao grito, do grito à ironia, porque há muitos registos diferentes nos poemas. Neste número, Ben Clark, um jovem poeta espanhol de ascendência britânica, nascido em 1984, fala da sua geração, à qual teriam chamado a dos “filhos da bonança”, para corrigir: “os filhos dos filhos da ira, / herdeiros de todos os despojos” (25). “Já não havia consolo nas nossas almas. Tínhamos chegado tarde ao mundo” (29), dirá noutro poema. É uma temática que estava presente já no primeiro número da revista, particularmente nas colaborações de Beatriz Hierro Lopes e de David Teles Pereira.

E todavia, como assinalou Luís Miguel Queirós (Público, “Ípsilon”, 12 Setembro 2008), a condição geracional da revista não é imediata para o leitor, dado que em lugar algum ficamos a saber a idade dos colaboradores, embora, neste terceiro número, haja uma nota a indicar que os poetas traduzidos nasceram em 1984 e 1985 (de resto, como os responsáveis pela revista). Mas Cláudia Santos Silva, José Carlos Barros e Luís Filipe Parrado, pelo menos esses, são mais velhos. Os dois últimos constavam da Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa organizada por Pedro Mexia em 1997 e têm livros publicados já na década de 80.

Apesar disso, alguns dos autores mais novos, como Beatriz Hierro Lopes, David Teles Pereira e Diogo Vaz Pinto, ou o espanhol Ben Clark, trazem para os seus poemas a questão geracional, de modo muito explícito. “Puta de geração esta em que nasci!”, escreve Diogo Vaz Pinto num dos poemas deste terceiro número, fazendo eco de um texto publicado por Beatriz Hierro Lopes no nº 1, intitulado “Geração do Silêncio”: “Somos a geração da revolta sem revolução, herdeiros dos sonhos naufragados dos nossos antepassados próximos” (Criatura, nº 1, p. 30). Neste terceiro número, Diogo Vaz Pinto termina um poema escrevendo:

Outros sacudiram daqui o peso da rima e

o das sílabas contadas, talvez nos cumpra a nós

tirar de vez o açaime à besta, largá-la nas ruas

e deixar que morda, rasgue, estrafegue e fôda

tudo o que cheire a mijo, hesitação e medo.

(81)

Nestes versos, importa reparar no sujeito plural, “nós”, de resto presente também um pouco antes: “Tiramos umas notas, comparamos ideias, / vamos avançando com as primeiras noções / para pôr esta porra a mexer” (81). E é nisto, e não simplesmente por a palavra “geração” estar presente em alguns poemas, que podemos sentir uma diferença geracional. Nisto, que é uma forma de desenvoltura, uma agilidade que se pressente no modo como estes poemas atravessam muito do que tem sido paralizante: o tão anunciado fim (?) das utopias, o relativismo e a indiferença, a contracção do tempo e do espaço no mundo contemporâneo, os efeitos da globalização e da mercantilização massiva, a dominância da imagem visual, etc.

O que esta revista tem de novo no seu conjunto, mesmo se nem sempre o grau de conseguimento dos textos é idêntico, é, creio eu, esta desenvoltura. Como se manifesta ela? Em primeiro lugar, na fluência discursiva, herdeira dos processos de contaminação entre poesia e prosa que marcaram notoriamente o final do século XX, e na maneira como ela permite trazer para os poemas aquilo que Diogo Vaz Pinto chama “toda esta sucata que encalha nos meus versos”:

(...) É bom saber que somos muitos,

nós que temos a vida engasgada entre golpes

publicitários. Já viste o novo da Superbock? (70)

Depois, essa desenvoltura está também presente no modo como alguns poemas fazem confluir referências poéticas e estéticas muito diversas, como tem vindo a acontecer nos textos de David Teles Pereira. Neste terceiro número, para dar apenas um exemplo, o poema “I Love LX” arranca num ritmo e num tom que fazem pensar em “América”, de Ginsberg, mas isso não impede que no poema compareça também um célebre verso de Shakespeare – “Shall I compare thee to a Summer’s day?” –, embora inteiramente subvertido: “Lisboa, posso comparar-te a um dia de tempestade?” (49). A variedade e a diversidade de tradições poéticas convocadas e sobretudo o modo como elas se misturam entre si e com outras referências culturais muito diferentes parecem implicar uma agilidade na mudança de registos que traduz uma relação com a poesia certamente associável com a cruzada intermitência com que hoje lidamos com os muitos meios de informação disponíveis e com os seus efeitos sobre a experiência da temporalidade.

A transposição dessa experiência e o contraponto estético que ela pode gerar configuram certamente uma questão geracional – a de cruzar o tempo lento da escrita e da leitura da poesia com a velocidade da vida e da circulação da informação contemporâneas e com os modos de leitura rápida que esse tempo lento vem suspender. E dir-se-ia que Criatura responde a isto apurando, também ela, muitas vezes, um discurso marcado por transições muito rápidas, por cortes, por uma espécie de zapping temático, temporal e intercultural. Esta situação não é inédita, mas parece-me notória e significativa a maneira como os poetas mais novos da Revista cruzam diferentes tempos e diferentes literaturas – e isso é particularmente visível nos poemas de David Teles Pereira –, evidenciando um modo de ler tentacular e muito descentrado, onde a poesia portuguesa já não é aquele ponto de partida do qual se ia para as outras literaturas. Do ponto de vista cultural e estético, as fronteiras nacionais fazem cada vez menos sentido, o que também se reflecte nesta agilidade de que estou a falar.

Ainda a propósito de esta me parecer uma poesia desenvolta (e estou, propositadamente, a evocar o título de um ensaio de Eduardo Lourenço), gostaria de sublinhar também os registos dos textos de autoria feminina presentes neste número da revista, de Beatriz Hierro Lopes, Cláudia Santos Silva, Marta Caldeira, e da inquietante espanhola Elena Medel. Apesar de tudo quanto os distingue, eles partilham uma desassombrada assertividade no feminino que faz pensar que muitas das lutas das mulheres ao longo do século XX se refazem, no início do século XXI, pelo lado da evidência, o que só pode significar uma vitória, ainda que sectorial, é certo, mas que explica o cansaço de Cláudia Santos Silva diante do machismo e da misoginia (38), apontadas como remanescências de um passado que, mesmo se não se resigna a morrer, é já visto como irrevogavelmente morto.

Não é, julgo eu, por acaso, que esta Criatura tem sido recebida com assinalável entusiasmo. Ela faz-me pensar numa figura dos Dezanove Recantos, de Luiza Neto Jorge: a de Vaídio, esse ser entre o humano e o gato, sempre entre ir e vadiar, figura expectante e futurizante por princípio e natureza, da qual diz Luiza Neto Jorge: “Seu corpo de outra época / nas superfícies menores é corpo grado a incidir. // Seu corpo de animal / só fala de sorver / tudo o que encontrar”. Ao ler Criatura, sentimos que a revista atravessa, com essa desenvoltura de que falei, lugares e circunstâncias que têm sido de melancolia e, por vezes, também de parálise – o que não quer dizer que não exprima desconforto, ou mesmo uma saudável raiva. Mas esta criatura passa, sem perder a energia, e um pouco como passam os gatos. Com aquela elegância esquiva com que o corpo do gato se adapta a ter pouco espaço – e passa. Não sabemos ainda onde vai, mas a maneira como vai é seguramente bonita de ver, ou melhor, de ler.


Rosa Maria Martelo