terça-feira, 10 de junho de 2008

Sombras pelo caminho

Foges, mas de tal modo a olhar para trás
que a tua sombra fica pelo caminho.

José Amaro Dionísio

Acomodado entre pretensões estafadas,
rastos e resumos nas paredes, números de telefone
para ligar no caso do silêncio nos pegar fogo,
está ali um rosto a emoldurar o susto deste cenário,
com o olhar a pique recortando desajeitadamente
cada vulto, os contornos indistintos
do capital humano desbaratado noutros sonhos
e derrotas. Tresnoitados, inflamáveis, livres
para morrer e diluídos na assombração uns dos outros.
De pouco se fazem, aqui, os dias.

Alguns trocos para simplicar a ciência holística
do abandono, um modo de florear a ausência,
as pontas dos dedos adoçadas, revirando um bolo,
depenicando o creme, separando outro cigarro
para a extinção - fumo e efeitos no dominó
destas tardes. Mas estavas a pensar
numa outra ocasião, sensivelmente distante,
em que alguém - cansando-se de esperar -
se deixou perder recostada a uma dessas canções
que na falta de assunto se desviam para o amor,
e seguia por aí declarando-se,
"gosto muito de ti", etc.

Estudos recentes comprovam que
há horas para tudo, mesmo destas
excessivamente temperadas em que
(quase sem querer) nos levamos
a acreditar em sentenças sem nexo
e na cura para o cancro da solidão.
Assim se desculpa um peito roto, babando-se,
e em tudo vemos marcas de afecto,
qualquer nódoa que manche a roupa serve,
e tão depressa ficamos nus e nos laçamos
na partilha de um desespero
sem causa nem saída.

Felizmente a reprodução também acabará por dar-nos
como casos perdidos, chegando ao fim a munição emotiva
que reservámos para este tipo de poemas.
E depois é tão triste ir envelhecendo
à medida que o corpo se torna a última
e a pior das lembranças. A mão alinha
o cabelo enfraquecido e uma borboleta de cores sujas
termina a sua longa travessia
entre os arquipélagos da memória
morrendo-te sem peso, no ombro esquerdo,
sobre uns restos de caspa.

Diogo Vaz Pinto