terça-feira, 10 de junho de 2008

acabamos sempre por tornar
às mesmas ruas, à noite insone
e imensa, onde nos dói descobrir,
na companhia dos outros,
o quanto nos reclama a solidão.

Rui Pires Cabral

Pouco valor tinham as intimidades
que fomos fabricando para prolongar as conversas.
O que já conhecíamos um do outro era o suficiente
para entretanto podermos calcular, sem grande
margem de erro, que não estávamos ali a definir
planos para o futuro - essa tensa linha que nos pertence
menos ainda que o passado. Estávamos
triste e simplesmente a esticar as pernas
da imaginação, mas nunca seríamos mais
do que todos esses exemplos de que
queríamos tanto fugir.

Entre um abraço ou um beijo sem demora,
terá sido durante aqueles passeios perfumados de equívocos,
ao longo das floridas veredas, que deixámos os nossos primeiros
cadáveres baleados por sonhos e disparates,
escavando devagar grandes e médios buracos
numa cerimónia de comedida emoção. De pronto
abandonávamos os nossos túmulos mal encobertos
e regressávamos a tua casa, à sobrevivência rústica
que o teu pai preferiu a um lote
numa rua truncada pela vida de outros,
nessa que já não será propriamente a capital dos móveis,
mas conserva ainda o título, a cidade que tu sabias detestar
como eu, naquele tempo, não o podia entender.

Encostávamo-nos um ao outro, às tardes
como a de hoje mas com mais pássaros
e tentávamos desaprender a tendência de buscar
um sentido útil nas coisas. Os teus gatos, em troca,
ensinavam-nos a disciplina do ócio.
Ali perdíamos tanto quanto se pode perder.
Estirados ao sol, tranquilos, como se o mundo
e os seus horrores de última geração
não tivessem nada a ver connosco.
Hoje sem uma companhia que me exija tão pouco
quanto a tua, já não sei o que detestas nem aquilo
a que te encostas, nem tento saber - perdoa-me pois
se se der o caso de tropeçares neste poema.

Para lá de tudo o que me soube chocar,
já não teimo tanto, aquilo que ainda sinto
é que os nossos corações são coisas destacáveis,
um peso sem razão que já naquele tempo
fui deixando entre canteiros (destes que
não enganam quase ninguém)
para treinar a pontaria com o espesso mijo
e o riso, essa impotente violência que me restou.
Já não são os mesmos motivos que partilhei contigo,
mas encontrei outras razões para continuar
a apreciar viver nesta outra capital,
maior que a tua.

Não me apetece pensar no que terá mudado,
ainda sou, parece-me, o mesmo
talvez um pouco menos falador. Deixo-me ficar
por menos e o que me detém é uma desmesurada
compreensão
que o que virá por diante
não surtirá nada de definitivo, nenhum encanto.
As superfícies e contornos rendilhados
das nossas vidas ganharam um relevo doentio
e cada objecto do nosso apego partiu-se
ou irá ainda partir-se, reflexos temporários,
frutos que nascem para a mesma sombra
que os sepulta.

A consciência, de outono a outono,
vai-se subornando e acaba por se confundir
no barulho que faz agora mesmo o vizinho, às voltas,
com o aspirador no andar de cima. Eu não
falo muito nisto, mas preciso cada vez mais
da escrita. É como se a meio de um verso
o mais importante fosse o ter a certeza que a vírgula
está no sítio certo, e mesmo nos dias piores
é cada vez menos aquilo que me tira do sério.
Não sei se o entenderias. Inexpressivo
mas atento, como os gatos.

Diogo Vaz Pinto