domingo, 15 de junho de 2008

A Marca

Sentada na esplanada observo homens e mulheres vindos das mais diversas direcções. Analiso o seu rasto na incoerência rítmica com que vários parecem optar no último segundo pela mudança de trajecto. Todos sabem para onde querem ir. Sufocam os seus passos ao caminharem em direcção a um qualquer destino quotidiano e banalmente promíscuo. Mas tu, anónimo sem nome, despertas-me atenção. Sinto a pressão dos teus passos sobre a calçada de granito. O cigarro que acaricias com o polegar da mão esquerda está prestes a morrer-te, quando num único gesto mecanizado atiras a beata para a rua. Não olhas para trás. O cigarro que te aqueceu o espírito e se esfumou entre os teus dedos, nessa relação tão íntima que nasce nos lábios e arde nos pulmões é esquecido. É sintomática a forma como te esqueces, ao abandonares outros objectos quotidianos – marcas do que foste, escamas do que nunca serás. O mesmo fim é esperados pelos papéis que deitas para o chão, ao sentires o obstáculo que eles constituem à entrada da tua mão no bolso do casaco de cabedal.
Sem te conhecer, reconheço-te.
Tens vinte e poucos anos, não és homem ainda e já não te restam mais ilusões para trocares por gotas de esperança. Sei que o que mais te dói, não são as mulheres que não amaste, mas sim as ideias que nunca consumaste. Teorias privadas, inutilizadas pela tua incapacidade de te fazeres ouvir aos surdos que te rodeiam. Projectos presos a um futuro que te negas a escrever no medo terreno que eles se realizem. Não reclamas nada ao mundo. Vêem-te apático, irregular, nuclear. Mas tu já sabias que ao nasceres te estava sentenciado o universo inteiro aos teus pés. Sentes que o peso que ele te devolve é insustentável. Quando tudo é possível a única beleza reside na impossibilidade.
Um dia dirigir-te-ás calculadamente para a única saída que hoje, te vaticino: o abandono. Sem que em ti haja réstia de revolta, entregar-te-ás a fragmentação do que és. O teu corpo e o teu espírito revogarão o contrato firmado pela tua respiração cardíaca. Serás duplo. E na existência silenciosa do teu espírito assassinarás as coordenadas do tempo. Reinventar-te-ás uma vez mais. E outra. E será sempre na última que acreditarás ter encontrado o sentido. O tacto da vida. E nesse ponto sempre fixo de ti mesmo, redescobrirás sistematicamente o que agora suspeitas: o único tacto que te está guardado é o da morte. Saberás então, quando essa dor te dilacerar as entranhas, que gente como nós, sabe morrer excepcionalmente bem. E morremos todas as noites.
Aí, algo em ti gritará: Arde! E Arderás nas chamas que te rasgam espírito e corroem a carne, na dilaceração da razão. No único movimento de entrega possível, pagarás o preço da tua visão com a sanidade que vês nos outros. Chorarás lágrimas invisíveis enquanto os fantasmas que possuis e ainda desconheces, destroem o altar que construíste em nome dos princípios que te ensinaram a honrar. Verás o que foste. Verás o que és. Verás o que gostarias de ter sido e nunca serás. E na fusão de ti tornar-te-ás cego para o tempo. Cego para o desejo. O teu quarto será inundado pela escuridão da tua sombra, consumindo o que há de humano no Homem. Não haverá espelho que reproduza o reflexo do que és mesmo antes de teres nascido.
Um chamamento do sangue oculto nas tuas veias, ameaçará despertar-te da arquitectura sonolenta dos teus ossos. Adormecerás e acordarás no passar dos dias, sem saberes se dormes enquanto estás acordado ou se é quando dormes que estás verdadeiramente desperto. Se a vida é um sonho ou se o sonho é que é a vida. O que te importará será o que vês ao deitares-te nesse silêncio letal que te congela os membros e queima a alma. Não conhecerás mandamentos. Não terás religião. Terás apenas fé na sombra que se aninha a ti quando te deitas e se ergue contigo quando te levantas. Começarás a ama-la. Quando um secreto desejo te toldar a visão. É nesse ponto, que a Negra, tornar-se-á tua mulher. A única capaz de viver e morrer contigo em cada toque do teu pulsar matutino.
Quando te sentares no fim da tua cama e vires que Ela se eleva da tua sombra – a porta aberta do teu fim. Compreenderás que há mais na morte do que na vida. Ela que é a aranha a tecer a teia onde te matarás. Eu que te vejo, sei que o corpo dela se enrolará a tua volta, abarcando-te em todas as tuas dimensões. Ela que te tocará até a impossibilidade da sua existência. Ela que é a Criatura. Ao metamorfosear-se em imagens míticas para que a tua mente a possa ver. O teu coração baterá sincopadamente, recordando-te pancadas ocas num tambor, tudo em ti estremecerá ao desabares. Haverá um grito. E um silêncio oculto no grito. Haverá uma libertação, na dança com que te deixarás violar por emoções cuja propriedade te é agora desconhecida.
Por fim, terás o entendimento sentido, arduamente vivido. Um vício novo te brotará do suor. Pressentirás a loucura. Aceitarás a morte. Ajoelhar-te-ás. Tu que és fogo. E a luz que emana dele. Não serás mais homem, serás Deus. O teu único Deus. E por momentos, saberás que a dor é o mestre do silêncio. E que o silencio é a voz dos Deuses. Os mesmos que hoje morrem anónimos nas marés do teu sangue.


Beatriz Hierro Lopes