quarta-feira, 7 de maio de 2008

UMA «GERAÇÃO DO SILÊNCIO»

Texto de apresentação da revista «criatura». Da autoria de Nuno Júdice.
Publicado na edição de 21 de Maio do Jornal de Letras.


Não é muito evidente, nos tempos que correm, que uma revista de poesia surja logo no primeiro número com a afirmação de qualidade e de coerência que esta «criatura» apresenta. Entre um parágrafo introdutório e uma nota final, ao longo de 110 páginas, o leitor vai descobrindo quinze novos poetas com a surpresa de vozes originais e que dominam plenamente a linguagem poética.
É evidente que se trata de um ponto de partida para o que se poderá designar um grupo, uma geração, ou apenas uma reunião de vozes que manifestam uma identidade temática e estilística; mas para além disso, há uma vontade de sinalizar esta diferença: dizer esse poético de um modo que vem ao encontro deste tempo – um tempo de cinza e de alguma névoa, no que respeita à visão do que é novo – contrariando também as modas que apelam à facilidade e ao imediato, prescindindo da invenção.
«Não precisas explicar ou dar nome a um movimento para fazeres as coisas moverem-se. Se gostas escreve, escreve com gosto», diz-se na nota de abertura. E o facto é que o nome e a explicação deste movimento, se é disso que se trata, vem da junção destes dois tópicos: o prazer da escrita – mas este prazer decorre não de uma auto-satisfação que se esgota no solipsismo, mas de uma entrega ao leitor que é interpelado a cada poema para descobrir o que é diferente.
E esta diferença, que implica o literário, associa-se também às variações de tom que em cada poeta se encontram, compondo um fundo «sinfónico» para diversas interpretações do sentido do poético. Esse fundo nasce, antes de mais, de um conhecimento exacto daquilo que é o material do poema: o conhecimento da poesia e das tradições que a percorrem; e aqui encontramos, como base para o trabalho destes poetas, leituras diversas, que percorrem várias épocas e vários movimentos, dando uma sustentação formal às linguagens individuais e próprias que aqui se reúnem, constituindo uma «geração do silêncio», como a define Beatriz Hierro Lopes:
«Somos a geração da revolta sem revolução, herdeiros dos sonhos naufragados dos nossos antepassados próximos. Descendentes de idealistas estamos despidos de ideologias originais pela forma enciclopédica com que conhecemos os que pensaram e defenderam os que viveram antes de nós. Somos os mais frios juízes da História feita na nossa ausência. Definidos pelas conquistas tecnológicas com as quais crescemos somos rotulados como «Geração Y», «Geração Net» e «Geração Boomerang». (pág. 30-31)
Se Allen Ginsberg, em «Uivo», dizia ter visto «os melhores espíritos» da sua geração «destruídos pela loucura», hoje a poeta sabe que «o que corre hoje nas nossas veia é veneno, premiado pelas mais diversas marcas, engarrafado em vidros fumados de diferentes cores». Não se trata já de loucura, mas de uma rimbaldiana «dissolução do eu».
Esta consciência do que pertence à esfera da alucinação resulta, por outro lado de uma presença da razão no espaço do que se sente: «Um sentimento que se agasalha na gabardina cinzenta do pensamento», escreve Ana M. P. Antunes. O sentimento, nascido da vida emocional e afectiva do ser humano, é comparado a um cigarro que o homem solitário fuma numa paragem de autocarro; o seu tempo é efémero, o seu destino é o chão onde «alguém que passa, pisa-o, apagando o sentimento que alguém fumou». (pág. 22). É, como diz um belo título de António Ramos Pereira, «O poema que Proust não escreveu», o apagar a cada instante dessas memórias que estão condenadas a desaparecer se não forem consideradas como a herança mais preciosa da vida que cada um nos deixa:
«como quem pergunta ao avô
sobre memórias dele por ele esquecidas
que a neta guarda agora no seu regaço
ou junto ao peito, tanto faz, guarda
como património seu,
como prova de que a memória
(à semelhança ou ao contrário de tudo isto)
não tem de ser falsa». (pág. 28)
Vamos no «contra-sentido» de uma vivência artificial de ruas vazias, que só «regurgita de vida nos centros comerciais», da «cidade que se reconstrói fingindo ser o que já não é», no poema de Cláudia Santos Silva (pág. 39). O poema não evita essa descrição do mundo presente, que surge denunciado na simples enumeração da paisagem urbana em contraponto com um campo de «aldeias desmembradas». David Teles Pereira leva esse jogo urbano a uma dimensão cósmica, que o leva a interrogar-se
«como pode um corpo jantar numa Supernova
onde da ementa consta o próprio cosmos servido
com um salteado de estrelas a dançar» (pág. 42).
antes de entrar na desmitificação ao mesmo tempo teológica («Deus é de longe o pedinte menos talentoso de Lisboa») e literária («Ontem encontrei o Kerouac à espera de boleia ou de/alcançar o Nirvana. Não parei o carro»), introduzindo a dimensão irónica que questiona a banalidade de uma sacralização que transforma em produto de consumo mediático e cinematográfico tanto a divindade como os ícones da literatura e do cinema levando-o, num dos mais emblemáticos poemas desta revista, a «Elegia cor-de-rosa», a dizer que
«Sou filho daqueles que lutaram no dia 25 de Abril de 1974
Para que hoje eu possa ficar em casa, aborrecido, a escrever sobre
Aquilo que nunca vou ser»,
e concluindo numa proclamação que tem o ar de manifesto desta «geração do silêncio»:
«Sou moderno e o mesmo é dizer que morri muito antes de ter nascido».
Se há proclamação, manifesto, provocação, há também um cuidado extremo na forma e na linguagem destes poetas. Como escreve Diogo Vaz Pinto,
«em cada gesto escondo ponderação, um ensaio
uma tentativa absurda, um projecto mental
uma sobrevivência feita de exercícios de respiração» (pág. 53).
São dele dois poemas também nucleares na definição de uma atitude comum a este grupo: o «Acordo relativo à ortografia dos nossos silêncios» onde fala «de uma geração revoltada/simplesmente porque não tem a sua revolução»; e o «Penúltimo poema de amor», onde se descrevem os «paraísos artificiais» da idade tecnológica à luz da violência e do êxtase que organizam a noite urbana.
Idêntica definição geracional, mas num plano mais estético, é a de José Carlos Barros, com uma crítica ao mundo literário feito por «seis críticos literários de serviço», e indicações precisas para conseguir uma poesia para o século vinte e um:
«Depois há o óbvio: não enxamear a coisa
de adjectivos ou mesmo reduzi-la ao osso
não falar do corpo ou falar que a
metáfora não faz mal a ninguém»,
numa sequência onde se lê (intencional ou não) uma denúncia do mundo da escrita criativa, condicionante do ofício do poeta.
Encontramos também uma reformulação lírica, em que temas ligados ao amor ou à vivência pessoal se sucedem no modo mais elíptico e lírico de Maria Sousa, Marta Chaves, Nuno Araújo, Rita Branco Jardim, Susana Almeida, ou no tom narrativo de Marta Caldeira, que transpõe o quotidiano registado na sua mais banal presença para o universo poético. De salientar também uma ampla dimensão desse lirismo que consegue uma síntese da tradição romântica com o imaginário surrealista, como sucede em Sara F. Costa:
«vivemos na mesma esfera de fogo que acompanha o balanço dos enforcados».
É esta revista, por tudo isto, uma «criatura» com pés para andar e cujos passos espero que não fiquem tão silenciosos como se diz na «Nota final». Quanto aos «sinais de vida» que são dados por algumas destas poéticas, na sequência de poetas que se começaram a afirmar nesta primeira década como Daniel Jonas e Filipa Leal, são já o bom indicador de um necessário renascimento de uma poesia portuguesa que parecia ter entrado numa «apagada e vil tristeza».