terça-feira, 20 de maio de 2008

O sorriso da rapariga feia.

Estarmos sós é arrastarmo-nos em direcção à morte.
Céline, in Viagem ao Fim da Noite


Eu sou dessas pessoas que fala muito consigo mesmo. Ralho, chamo-me nomes vernaculares, aviso-me, faço-me perguntas, rio-me e canto sozinho. Sei que para nenhuma destas coisas eu necessito de companhia e fazendo-as, também sei que não sou assim tão maluquinho. Ia pois, a seguir pelo passeio da Rua Garrett, sorrindo para mim como tantas vezes me acontece, quando a rapariga feia que descia, ao passar respondeu-me com um incrível sorriso em que até os olhos participaram. Ao encontrar acidentalmente o olhar dela deixei de recordar o motivo da minha risota e calei-me. Continuei a subir o Chiado em silêncio. A rapariga pode ter pensado que era para ela que eu sorria e então retribuiu-me com aquele sorriso esperançoso, muito maior do que o que fora o meu. Também pode ter sido uma saudação de feliz ano novo, dessas que os estranhos trocam entre si por estes dias do calendário, ou simplesmente goste de sorrir sozinha e o que se passou foi o reconhecimento de um, por outro solitário.

Hugo Roque