quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Sob a ponte correu demasiado sangue
Para nos fazer acreditar
Que apenas uma estrada é a correcta.

Nicanor Parra


Cai a noite de repente. Na minha rua um homem agita-se ao vento e, num prédio do outro lado, alguém o transfere com um pincél e tintas para uma tela. Eu faço o mesmo no meu bloco de notas mas para fazer o retrato utilizo uma caneta azul.
Não sei se será mais fiel a tinta amarelada que o pintor da minha rua usa para pintar a cara do homem, ou a minha descrição de um homem torto, de olhos inchados e peles caídas.
Não interessa. Podia vir um escultor e fazer deste homem pedra moldada pelo vento. Não interessa. Este homem, um simples homem, é tudo isso, é o resultado final e conjunto de todos os olhos que o miram sem que ele se aperceba. É o resultado ainda da sua própria visão quando esta encontra a sua sombra.
O que interessa é ver, absorver e exteriorizar a nossa realidade, pô-la na rua, a caminhar à nossa volta. Tirar um pedaço de céu, filtrá-lo pela luz da nossa imaginação e expô-lo à admiração de quem quiser um pouco de céu refinado. Como se chega lá? À nossa maneira, como se entender. Basta ir. Um passo à frente põe-nos sempre mais perto da chegada. E as estradas somos nós que as traçamos.

Ana Antunes