sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

parto reservando um lugar no contra-sentido para melhor me poder afastar
enquanto a locomotiva curva no dorso das colinas preguiçosa
rindo-se dos campos de nabos e couves, dos salgueiros desfolhados
das azinheiras e dos loureiros, das aldeias desmembradas
e vão parece o meu corpo, vão parece o pensamento

enquanto me aguardam as ruas vazias da cidade
é sábado à tarde quando há bandos de pássaros no choupal
e o burgo regurgita de vida nos centros comerciais
a minha face irregular está cansada
tomba a cal das argamassas que alguém recobriu de cores plásticas e opacas
impermeáveis ficaram as casas arfantes os velhos
sentados nos umbrais de cimento a fingir pedra cansada
cansada a cidade que se reconstrói fingindo ser o que já não é
e busca recobro nos planos envidraçados dos pontos de encontro de fast-food
onde a luz do sol é filtrada o ar que se respira condicionado a chuva não entra
e bandos de pardais desgarrados se empanturram de restos de pão e de gordura
onde já nem se fuma onde se fala e cala e de novo se fala
ao telemóvel ao ouvido das crianças mordiscando a orelha dos namorados
gritando aos mais surdos
enquanto uns se enlaçam outros se encontram e uns outros se afastam

eu assim me afasto em silêncio
subo a calçada de seixos rolados colhidos no rio
quando havia um areal, laranjais perfumados e um cais de madeira
regresso no contra-sentido
vão parece o meu olhar.

Cláudia Santos Silva