terça-feira, 22 de janeiro de 2008

A hora

para o David

Vamos lá comparar mitologias. Tu e eu, os dois em português
(não será por acaso) podemos dizer que os nossos nomes
estão lançados numa mesma pira funerária, o que
pode ser acidental, ou talvez fortuito. Se acreditássemos
em golpes do destino trataríamos mal a verdade, exortando
insignificâncias e superstições, quando afinal estamos aqui
acercados do mesmo abismo onde espreitaram aqueles
que, como nós, conseguiram esquecer o tédio destes minutos
dados a comer aos pombos do futuro, a favor da mística
de um passado feito de refúgios literários, nos quais jovens demais,
como nós, se apercebiam de como o corpo se estraga e a vida
se mata muito antes de ceder, acompanhando o movimento
simples, discreto, direito e circular do envelhecimento. É nos silêncios,
já se sabe, que se dá o apagamento da memória; nós temos
os ditirambos que engarrafamos e atiramos ao mar
sempre que avistamos uma gaivota atravessada como um rasgão
no azul, com as asas contra o vento, planando simplesmente
num breve pensamento, um pouco acima de todas as coisas que
não têm como resistir ao pragmatismo das leis concretas do mundo, tipo
a força de gravidade entre outros lugares comuns. Aqui estamos assim
os dois a aquecer as mãos contra este vento frio que sopra
do litoral para o interior deste nosso estreito país, onde
mesmo um grito é como um segredo, e um sonho
é como uma pedra atirada em arco para dentro de um lago negro
que a engole sem cerimónias, para a esquecer lá no fundo - mas
(e este "mas" é a nossa aposta) - não há vela nenhuma
que brilhe mais do que a primeira, e nesta noite sem fim
temos escuro para os dois, escuro suficiente para levantarmos
um incêndio. Que ninguém nos espere. Entretanto já é hora e nós
__________________________________________já estamos a contar:

Diogo Vaz Pinto