segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Criatura n.º6, por Silvina Rodrigues Lopes


[Texto lido na apresentação da revista criatura n.º6 no dia 28 de Janeiro]

O que posso fazer para apresentar uma revista de poesia, esta revista de poesia, Criatura, nº 6? Em primeiro lugar dizer os nomes dos poetas que nela participam: Ana Duarte, Ángel Mendoza, António Gregório, Clara Pinto Caldeira, David Teles Pereira, Diogo Vaz Pinto, Golgona Anghel, Inês Dias, Jaime Rocha, Jesús Jiménez Domínguez, John Matter, José Carlos Soares, Luís Filipe Parrado, Luís Pedroso, Manuela Parreira da Silva, Nuno Ramos, Paulo Tavares e Tiago Araújo.
A apresentação supõe uma leitura dos poemas que compõem a revista, mas não que fale de cada um, ou de cada autor em especial. Seria incorrecto, em primeiro lugar porque qualquer nivelação ou qualquer preferência teria de ser devidamente justificada, e justificada a precariedade dessa justificação, o que, se não for impossível, exige no entanto uma reflexão profunda incomportável nestas circunstâncias.
Assim, o primeiro e único gesto que esta apresentação pretende ser é um gesto de louvor: louvor à perseverança na edição de uma revista de poesia. Porque é louvável o entusiasmo e obstinação que sustenta uma ideia de revista como esta, Criatura, de que este é o 6º número?
Porque a sua existência começa por pôr em evidência algo de muito decisivo no viver em-comum: é que não sendo este em-comum a partilha de algo comum, como se da repartição de um colectivo se tratasse, ele é uma condição da existência, que só assenta na separação ou solidão pela qual cada um é insubstituível Porque o homem é sempre já social e o social é sempre já da ordem do sentido tecido em-comum, mas que no entanto só existe pela força criadora da afirmação singular.
Assim, uma “revista de poesia” pode ser um movimento de desfazer do preconceito da solidão poética como atributo de eleitos, concebidos e auto-concebidos como os que retiram de uma qualquer transcendência o alimento poético a que os outros não acedem. A poesia existe no mundo, participa dele, da sua desolação e dos seus acontecimentos. Como tal, ela está sempre implicada na sua transformação, naquilo que não podemos nomear, mas a que os poemas vão trocando de nome, sem perseguirem o que seria uma realidade sem nome, ou um nome adequado para as coisas, mas nomeações justas, para as quais não faz sentido o mundo como história fora da sua construção aqui e agora. Assim, romper com a ideia de um Portugal condenado a apodrecer é separar-se da ideia do mundo, dos países e dos indivíduos como sistemas fechados, idênticos... Na Criatura isso começa pela ausência de declarações unificadoras em função de positividades de qualquer ordem que pretendam colocar uma linha comum. Afirmação não significa ausência de decisão, mas a necessidade de perseverar nas decisões é também a abertura ao que as transforma. No caso desta Revista a decisão pelo plural é sobretudo a de colocar lado a lado poemas que se afirmam na sua heterogeneidade de modos voltados para a abertura de horizontes, como uma espécie de «desobediência civil» no campo literário: repúdio da injunção de competitividade que pretende governar o mundo, e da qual tantas vezes os poetas foram apresentados como mentores.
O mais intenso de um poema é onde ele se torna ilegível: atingir essa intensidade é o esforço da forma, a operação em que a dialéctica deixa de ser dialéctica perdendo-se na iminência do acontecimento, no seu ritmo que interrompe o já sentido, o já sabido. Por isso, a leitura de um poema é um momento de extrema implicação de quem lê, que para suportar a leitura sem a trair, constrói um nível de ligeireza, de jogo, em que o poema recomeça. Mas a verdade da leitura, a sua singularidade, não está aí, está no outro ritmo que quebra a ligeireza, está na poesia. Talvez se não possa ler poesia sem assumir a dimensão de performance que implicaria já a sobreposição de um gesto artístico a outro: o apagamento das máscara que tão afincadamente se nos colam e que pode passar pela sua troca mais ou menos vertiginosa.. O que quer dizer que através das máscaras, das fábulas, se persegue o ponto sem espessura, sem máscara, em que a ausência de sofrimento se faz iminente, chame-se-lhe amor ou terror, verdade, ou infância, palavras que os poemas vão tornando mais pobres, mais secretas e por isso mais aptas a serem íntimas, partilháveis na sua impartilhabilidade.
Há uma ligeireza da leitura de poesia, em revistas ou fora delas, que é condição para dizer sim ao dom, sem sequer o aceitar, o que traria desde logo o peso da dívida. Um poema é-me dado sem nada me pedir em troca – nem que eu mude, nem sequer que o aprenda de cor – e isso transporta um certo êxtase, um impulso para sair de si, para o mundo sem história que o detenha ou obrigue. Como qualquer coisa que existe sem expectativas, sem finalidade, o poema celebra a existência. Ele diz o encanto que nela se torna inseparável da sua precaridade e do seu dirigir-se a qualquer um, a «nós», uma indeterminação subentendida no enunciar. Por isso, a ligeireza me aparece como respeito pelo dom que é o poema.
No entanto, a ligeireza só pode vir da armadilha através da qual a palavra vã do poema se faz exigência de escrita: armadilha que seduz quem lê e o desloca sabotando o chão em que quereria ser tal ou tal, e abrindo o espaço do recomeço do poema, aquele em que o seu começo se dá no recomeçar – o escrever de novo escrevendo outro, escrever que seja outra resistência ao sofrimento, outra coragem de enfrentar. Resistência e coragem são avesso e direito que se não distinguem, pois se trata de uma mesma camuflagem em que a exasperação perante a realidade na sua face desolada é também dizer sim à realidade atravessada dos ritmos plurais, incontáveis e insubstituíveis de viver morrendo e de morrer vivendo.
A revista Criatura é apresentada por um texto fabuloso que não tenciono resumir, mas de que destacaria o dinamismo, dado pela multiplicação de verbos – erguer, devolver, perder, agitar, escutar, quebrar, sacar, guardar, regressar, continuar, servir, recompor, encontrar, mover-se, ter – em confronto com o que é dito ser a nossa época: «era embalada no podre fascínio da antecipação, da paralisante expectativa”.
É bem contra esse “podre fascínio da antecipação” e o catastrofismo de que se alimenta que os poemas que constituem a revista podem ser lidos. Na pluralidade das suas vozes, de lâminas mais ou menos evidentes, podem destacar-se alguns movimentos, tais como: o assomar do mais límpido enfrentar, que é uma recusa de pactuar com estereótipos e o suposto bom gosto, sem ignorar que os múltiplos ecos que as palavras acumulam são também os que vêm de outros poemas, outros ritmos, outras frases, por vezes estilos que se entranharam e que se ostentam como que a dizer que o puritanismo é uma falácia pegajosa e que a “natureza gosta de se esconder”; a errância não melancólica, em que o passado salta para o turbilhão do aqui e agora sem pedir licença; a disponibilidade em que a atenção às palavras e às ruas se confundem assinalando que umas não existem antes das outras e que não o seu entrelaçamento não é controlado por nenhuma hierarquia; o combate com os fantasmas por dentro da morte que se não deixa atravessar; a travessia de ficções em busca do que as quebra; a viagem por uma memória-aviso-contra-a-desolação.
São vários os movimentos que se desenham na diversidade de estilos dos poemas que compõem esta Criatura. Procurar enumerá-los todos não serviria de muito, pois o que acontece num poema não se ajusta á descrição, que pretende sempre ainda controlar alguma coisa, ter o poder de fixar, que é de certo modo terrível. Mas para além disso, sublinhe-se que se trata de linhas que não correspondem a autores, mas que são transversais a diversos autores, ganhando em alguns um traço mais forte, noutros mais imperceptível, mas sempre traços centrífugos face ao niilismo crescente nos ambientes em que as palavras, reduzidas a instrumentos para estatística e observação, se tornam propagadoras de indiferença.
Assim, de poesia nunca se fala: de segredo em segredo, passa-se e aprende-se, apenas isto: a exigência de recomeçar, a certeza de que só se vive desmunindo-se da autoridade qualquer que seja o nome que se lhe dê: deus, o sacerdote, o professor, o poeta.
Assim, a poesia incita-nos a continuar a “chegar a meio do jogo” sem nada se pretender ganhar, incita à ligeireza de continuar, a crer que se começa sempre, sem nada supor de garantido, e que o que vem de algum modo se antecipa, não como solução, mas como transformação das “soluções em enigmas”. Como força e sentido contra o fim e o sem-fim. É essa a força da revista Criatura, deste seu nº 6.