[Texto lido na apresentação da revista criatura n.º6 – no dia 28 de Janeiro]
O que posso fazer para apresentar uma revista de poesia, esta revista de poesia, Criatura, nº 6? Em primeiro lugar dizer os nomes dos poetas que nela participam: Ana Duarte, Ángel Mendoza, António Gregório, Clara Pinto Caldeira, David Teles Pereira, Diogo Vaz Pinto, Golgona Anghel, Inês Dias, Jaime Rocha, Jesús Jiménez Domínguez, John Matter, José Carlos Soares, Luís Filipe Parrado, Luís Pedroso, Manuela Parreira da Silva, Nuno Ramos, Paulo Tavares e Tiago Araújo.
A apresentação supõe uma leitura dos poemas que compõem a revista, mas não que fale de cada um, ou de cada autor em especial. Seria incorrecto, em primeiro lugar porque qualquer nivelação ou qualquer preferência teria de ser devidamente justificada, e justificada a precariedade dessa justificação, o que, se não for impossível, exige no entanto uma reflexão profunda incomportável nestas circunstâncias.
Assim, o primeiro e único gesto que esta apresentação pretende ser é um gesto de louvor: louvor à perseverança na edição de uma revista de poesia. Porque é louvável o entusiasmo e obstinação que sustenta uma ideia de revista como esta, Criatura, de que este é o 6º número?
Porque a sua existência começa por pôr em evidência algo de muito decisivo no viver em-comum: é que não sendo este em-comum a partilha de algo comum, como se da repartição de um colectivo se tratasse, ele é uma condição da existência, que só assenta na separação ou solidão pela qual cada um é insubstituível Porque o homem é sempre já social e o social é sempre já da ordem do sentido tecido em-comum, mas que no entanto só existe pela força criadora da afirmação singular.
Assim, uma “revista de poesia” pode ser um movimento de desfazer do preconceito da solidão poética como atributo de eleitos, concebidos e auto-concebidos como os que retiram de uma qualquer transcendência o alimento poético a que os outros não acedem. A poesia existe no mundo, participa dele, da sua desolação e dos seus acontecimentos. Como tal, ela está sempre implicada na sua transformação, naquilo que não podemos nomear, mas a que os poemas vão trocando de nome, sem perseguirem o que seria uma realidade sem nome, ou um nome adequado para as coisas, mas nomeações justas, para as quais não faz sentido o mundo como história fora da sua construção aqui e agora. Assim, romper com a ideia de um Portugal condenado a apodrecer é separar-se da ideia do mundo, dos países e dos indivíduos como sistemas fechados, idênticos... Na Criatura isso começa pela ausência de declarações unificadoras em função de positividades de qualquer ordem que pretendam colocar uma linha comum. Afirmação não significa ausência de decisão, mas a necessidade de perseverar nas decisões é também a abertura ao que as transforma. No caso desta Revista a decisão pelo plural é sobretudo a de colocar lado a lado poemas que se afirmam na sua heterogeneidade de modos voltados para a abertura de horizontes, como uma espécie de «desobediência civil» no campo literário: repúdio da injunção de competitividade que pretende governar o mundo, e da qual tantas vezes os poetas foram apresentados como mentores.
O mais intenso de um poema é onde ele se torna ilegível: atingir essa intensidade é o esforço da forma, a operação em que a dialéctica deixa de ser dialéctica perdendo-se na iminência do acontecimento, no seu ritmo que interrompe o já sentido, o já sabido. Por isso, a leitura de um poema é um momento de extrema implicação de quem lê, que para suportar a leitura sem a trair, constrói um nível de ligeireza, de jogo, em que o poema recomeça. Mas a verdade da leitura, a sua singularidade, não está aí, está no outro ritmo que quebra a ligeireza, está na poesia. Talvez se não possa ler poesia sem assumir a dimensão de performance que implicaria já a sobreposição de um gesto artístico a outro: o apagamento das máscara que tão afincadamente se nos colam e que pode passar pela sua troca mais ou menos vertiginosa.. O que quer dizer que através das máscaras, das fábulas, se persegue o ponto sem espessura, sem máscara, em que a ausência de sofrimento se faz iminente, chame-se-lhe amor ou terror, verdade, ou infância, palavras que os poemas vão tornando mais pobres, mais secretas e por isso mais aptas a serem íntimas, partilháveis na sua impartilhabilidade.
Há uma ligeireza da leitura de poesia, em revistas ou fora delas, que é condição para dizer sim ao dom, sem sequer o aceitar, o que traria desde logo o peso da dívida. Um poema é-me dado sem nada me pedir em troca – nem que eu mude, nem sequer que o aprenda de cor – e isso transporta um certo êxtase, um impulso para sair de si, para o mundo sem história que o detenha ou obrigue. Como qualquer coisa que existe sem expectativas, sem finalidade, o poema celebra a existência. Ele diz o encanto que nela se torna inseparável da sua precaridade e do seu dirigir-se a qualquer um, a «nós», uma indeterminação subentendida no enunciar. Por isso, a ligeireza me aparece como respeito pelo dom que é o poema.
No entanto, a ligeireza só pode vir da armadilha através da qual a palavra vã do poema se faz exigência de escrita: armadilha que seduz quem lê e o desloca sabotando o chão em que quereria ser tal ou tal, e abrindo o espaço do recomeço do poema, aquele em que o seu começo se dá no recomeçar – o escrever de novo escrevendo outro, escrever que seja outra resistência ao sofrimento, outra coragem de enfrentar. Resistência e coragem são avesso e direito que se não distinguem, pois se trata de uma mesma camuflagem em que a exasperação perante a realidade na sua face desolada é também dizer sim à realidade atravessada dos ritmos plurais, incontáveis e insubstituíveis de viver morrendo e de morrer vivendo.
A revista Criatura é apresentada por um texto fabuloso que não tenciono resumir, mas de que destacaria o dinamismo, dado pela multiplicação de verbos – erguer, devolver, perder, agitar, escutar, quebrar, sacar, guardar, regressar, continuar, servir, recompor, encontrar, mover-se, ter – em confronto com o que é dito ser a nossa época: «era embalada no podre fascínio da antecipação, da paralisante expectativa”.
É bem contra esse “podre fascínio da antecipação” e o catastrofismo de que se alimenta que os poemas que constituem a revista podem ser lidos. Na pluralidade das suas vozes, de lâminas mais ou menos evidentes, podem destacar-se alguns movimentos, tais como: o assomar do mais límpido enfrentar, que é uma recusa de pactuar com estereótipos e o suposto bom gosto, sem ignorar que os múltiplos ecos que as palavras acumulam são também os que vêm de outros poemas, outros ritmos, outras frases, por vezes estilos que se entranharam e que se ostentam como que a dizer que o puritanismo é uma falácia pegajosa e que a “natureza gosta de se esconder”; a errância não melancólica, em que o passado salta para o turbilhão do aqui e agora sem pedir licença; a disponibilidade em que a atenção às palavras e às ruas se confundem assinalando que umas não existem antes das outras e que não o seu entrelaçamento não é controlado por nenhuma hierarquia; o combate com os fantasmas por dentro da morte que se não deixa atravessar; a travessia de ficções em busca do que as quebra; a viagem por uma memória-aviso-contra-a-desolação.
São vários os movimentos que se desenham na diversidade de estilos dos poemas que compõem esta Criatura. Procurar enumerá-los todos não serviria de muito, pois o que acontece num poema não se ajusta á descrição, que pretende sempre ainda controlar alguma coisa, ter o poder de fixar, que é de certo modo terrível. Mas para além disso, sublinhe-se que se trata de linhas que não correspondem a autores, mas que são transversais a diversos autores, ganhando em alguns um traço mais forte, noutros mais imperceptível, mas sempre traços centrífugos face ao niilismo crescente nos ambientes em que as palavras, reduzidas a instrumentos para estatística e observação, se tornam propagadoras de indiferença.
Assim, de poesia nunca se fala: de segredo em segredo, passa-se e aprende-se, apenas isto: a exigência de recomeçar, a certeza de que só se vive desmunindo-se da autoridade qualquer que seja o nome que se lhe dê: deus, o sacerdote, o professor, o poeta.
Assim, a poesia incita-nos a continuar a “chegar a meio do jogo” sem nada se pretender ganhar, incita à ligeireza de continuar, a crer que se começa sempre, sem nada supor de garantido, e que o que vem de algum modo se antecipa, não como solução, mas como transformação das “soluções em enigmas”. Como força e sentido contra o fim e o sem-fim. É essa a força da revista Criatura, deste seu nº 6.
segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012
Criatura n.º6, por Silvina Rodrigues Lopes
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segunda-feira, 30 de janeiro de 2012
Criatura n.º6, por Osvaldo Manuel Silvestre
Ao número 6, a “Criatura” ficou verde, deixando-se das habituais tonalidades soturnas. Se o gesto é de afirmação, saúda-se, tanto mais que só lhe podemos reconhecer razões e razão, pois, no concerto escasso das revistas portuguesas de poesia, “Criatura” é aquela a que mais confiamos a hipótese de uma renovação geracional. A revista merece a nossa confiança, cabendo neste número o papel de revelação a Ana Duarte. Uma geração depois, reconhece-se o impacto produtivo do imaginário de Adília Lopes, ainda que “por outras palavras”: “Gosto de escutar às portas / quanto os outros fazem amor / (ou lá como se diz). / Gosto de pensar que fazem / o que eu também já fiz, / embora / por outras palavras”.
A diferença de “Criatura” começa por ser gráfica. A revista consiste em “poemas na página”, em composição legível e sóbria, sem índice, apenas com um separador com o nome do poeta que, no caso de ser estrangeiro, beneficia de breve apresentação. A abrir e a fechar dois textos, sempre: o “prefácio” em prosa, o “posfácio” em verso, ambos anónimos. “Criatura” responde, pois, a um ideal de “poesia, apenas”. Que, contudo, prefácio e posfácio põem em causa, na medida em que jogam a poesia para fora de si mesma, lançando-a contra as razões de um mundo desencantado. Do “prefácio”: “A escrita serve o encanto. A si, serve-se de uma furiosa atenção e recompõe melodiosamente o mundo, encontra nele uma cadência pessoal”. Uma mudança de tom é contudo perceptível neste nº 6, e essa mudança é reconhecível na “substituição” das considerações metapoéticas do “posfácio” do nº 5 pelas muito diversas que agora encontramos no texto final deste número: “muito cedo se fez / tarde demais neste país / tão dado à esgotada / encenação das suas memórias / senil adorando ruínas / seu império / d''exílios”. O poema queixa-se da “falta de tesão” nacional e termina mesmo em modo perigosamente citacional: “tudo nos chama e uns passos / perdidos aos outros dirão / que é hora”.
A mudança de tom parece imperiosa, e é isso que reconhecemos na forma como David Teles Pereira estraga um poema, até aí excelente, em torno do suicídio de Celan - “Morte pela água (Ciclo)” -, com um terceto final que introduz abruptamente o paroquial contexto português: “Este país é um lugar perfeito e, por isso, inóspito. / Portugal é um cemitério, / há séculos que todos andamos a caminhar descalços sobre corpos”. O mesmo autor não consegue, em dois poemas magníficos - “Tractatus Theologico-Politicus (Capítulo XVI)” e “Leviathan (Capítulo XVII)” -, deixar de oscilar entre uma tematização do largo espectro do teológico-político e um retorno ao pequeno contexto d''“esta merda de pátria”, no segundo poema, que aliás começa, sem pátrias, por uma pergunta fundamental: “''Sabias que as palavras eslavo e escravo / têm a mesma origem?'', pergunta-me Krystof”. Como fundamental, e sem pátria, é ainda a resposta: “''Sabes'', respondo-lhe, ''somos todos eslavos''”.
Podemos talvez ler este número como o registo poético de uma oscilação entre o não-nacional e formas várias de manifestação do “pequeno mundo” da nação, na era da troika, e da poesia. António Gregório seria um caso extremo dessa resistência da pequena escala (da memória e da comunidade, aferidas pelo pessoal e pelo anedótico, em poemas pequenos e perfeitos, ambas as coisas em demasia), um caso próximo do do espanhol Ángel Mendoza. No outro extremo, os textos em prosa de Clara Pinto Caldeira sobre os campos de extermínio, “lugares áridos, sem possibilidade de mapa”, lugares enormes “em vazio” e que suscitam o desejo de um “corpo universal”: “Estico os braços no meio de tudo e não toco nada. Quero um corpo universal. Em vez disso, alcanço vagamente um americano que pergunta: porque não fugiram?” Por seu turno, Golgona Anghel, em mais um impressivo conjunto de poemas, manifesta quer um gosto pela incisão e nitidez cortante de coisas como “nomes e camas”, quer uma capacidade rara para saltar disso para a escala maior do “desastre civilizacional”: “Não gosto de contar os desastres em detalhe / mas, se quiserem, posso escrever uma lista com nomes e camas. // Sou bem capaz de molhar o pezinho na história da barbárie, / condecorar o medo, / cortar-me a mão com que limpo as feridas / de uma civilização em queda”.
Em Luís Filipe Parrado, um poeta a seguir, a figura do todo surge partida, como no poema “Partes de um todo”, em que a tentativa de ler um livro difícil num banco de jardim é substituída pela contemplação: “Então levantei os olhos das páginas, / pousei o livro, vi um homem novo / aproximar-se e passar à minha frente / com um saco de plástico / com maçãs vermelhas numa das mãos / e uma caixa de cartão, com ovos, na outra. / O saco de plástico era transparente / e revelava nitidamente o esplendor e a forma / perfeita das maçãs, todas muito juntas / como partes de um todo”. Uma notável alegoria do estético enquanto membrana de um todo aproximativo, cujo “esplendor e forma” seria o de coisas “todas muito juntas” num saco de compras, ou no hipermercado de que elas poderiam provir - essa versão também aproximativa do teológico-político no capitalismo tardio.
Diogo Vaz Pinto, por fim, exibe de novo a sua capacidade para extrair consequências da narrativa da modernidade: “Sou arraçado. Vadio, / pela parte em nós que é de cão, nobre, / pela parte que é de lobo. Entre o quotidiano / e o mito, coleccionamos debaixo da língua / as unhas de deus”. No campo da poesia, tal narrativa coloca o poeta numa posição tardia, posição que uma figura tão clínica como a do “pior leitor” traduz, numa espécie de leitura a um tempo literal e paródica da “ansiedade da influência”: “Leio, pior cada vez, cada vez / mais tarde, tão depois de tudo, / e desentendo-me com todos eles, / cada um dos meus autores. Fico ali / meio na provocação, faço-lhes as traduções / mais abusadas. O pior leitor”. Nas palavras do poeta espanhol José Ángel Valente, “Dissolvida no conteúdo da tradição, a experiência pessoal é anónima (é a de todos os homens)”. Fiquemos com a lição do “pior leitor”, “essa inclinação maligna”: não pessoas mas versos. Criaturas.texto publicado no Ípsilon, dia 20 de Janeiro de 2012
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terça-feira, 27 de dezembro de 2011
Poesia pois é poesia
Autores:
REVISTA CRIATURA nº 6 – Novembro de 2011, 216 pp., 12 euros
(Tiragem Única de 300 exemplares)
Direcção: Ana M. P. Antunes, David Teles Pereira e Diogo Vaz Pinto
Impressão e Acabamento: Guide - Artes Gráficas Lda.
Ana Duarte, Ángel Mendoza, António Gregório, Clara Pinto Caldeira, David Teles Pereira, Diogo Vaz Pinto, Golgona Anghel, Inês Dias, Jaime Rocha, Jesús Jiménez Domínguez, John Mateer, José Carlos Soares, Luís Filipe Parrado, Luís Pedroso, Manuela Parreira da Silva, Nuno Ramos, Paulo Tavares, Tiago Araújo.
PEDIDOS: revista.criatura@gmail.com
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