segunda-feira, 11 de outubro de 2010

NOTA FINAL (quarto número)

continuamente
escrevemos e a pouco
e pouco deixamos o coração
ganhar raízes na boca
mastigamos e o que cai
sobre estas páginas
é o escarro ensanguentado
de que se alimenta
a criatura

em cada verso
um nó de sangue
por uma poesia que
encha a boca com o mundo
uma arte que se deixe
de arrotos místicos e se afunde
na sua natureza permeável
afectada, absolutamente sensível
no contraste, na invenção
pelo espanto
sem voltar a nada, mas indo
metendo-se, abrindo
por onde der
meio ingénua até
assim mesmo
filha da puta
da que foi com todos
não deixando, é claro
de preferir alguns

e que se lance enfim
clandestina
desavergonhada e suja
manchada e com orgulho
com todo o gosto
um novo encanto
pela palavra
gozar uma vez mais
à sombra doce dos nomes
chamá-los ao ritmo brusco
e desconcertado dos dias
destes que nos levam
pela mão, pela orelha
aos chutos, neste flirt
e que a novidade
seja a desta carne
e a deste seu modo
de se oferecer

e os versos, se há sempre
quem por eles se interesse
que estes sejam para os outros
para os desinteressados
os que lendo
se deixem interromper
encontrar-se também
nos episódios de um silêncio
comovendo-se entre gavetas
neste gesto de solidões
que se acompanham

assim aqui estamos nós
cada um ao seu jeito
ganhando cada detalhe
por tudo e por nada
neste país quase
sem querer, dito tão devagar
que a própria ideia se perde
esta paixão de si mesma
entristecida, um vento
sem vontade
como um sopro lamuriento
sobre esses campos
de um verde cansado
que se gasta
e nos estraga a vista
um olhar derrubado
para o mar, águas
devolvidas a si mesmas
e essa voz que baixinho
canta a repetição das vagas
e arrasta consigo
o mesmo de sempre

eis que então chega
a nossa vez
e é bem altura
de encorajar novas e mais
mais mãos entretidas
animadas, mãos violentas
mais cotovelos
apoiados no silêncio
mais braços e mais força
mais ombros
que sustentem o peso
deste que é
o nosso tempo