terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Criatura, n.º4, Dezembro, 2009

O mais recente número da revista Criatura apresenta o mérito indesmentível de reunir um conjunto de poetas que, pela solidez das suas propostas, fazem desta edição um momento particularmente interessante. Na diversidade de poetas coligidos (de autores inéditos em livro àqueles com obra já publicada), na convivência de modos e abordagens necessariamente diversos, reside a surpreendente solidez deste quarto lançamento – o conjunto mais equilibrado e mais forte de quantos publicou o Núcleo Autónomo Calíope.

Poderá salientar-se – entre outros caminhos possíveis – a convivência, que diria proveitosa, entre dois modos de entender a poesia – os quais, sublinho, não se excluem, antes parecendo complementar-se, ou deixar transparecer uma interpenetração de forças e motivações que não fazem pensar em escolas ou tendências antinómicas. Comum a ambas – entre outros factores, repito –, uma postura assinalavelmente despretensiosa e descomplexada, em relação, por exemplo, à própria poesia – «o sabujo mistério da poesia» (Miguel Martins) não parece tentar a generalidade destes poetas –; e posturas, marcadas pela degenerescência e pelo desejo de renúncia – «Quem acredita hoje na poesia?» –, serão, talvez, menos um instrumento retórico do que um profundo arreigamento a esse tempo que a «Nota Final» aponta – «mais ombros/ que sustentem o peso/ deste que é/ o nosso tempo». Um tempo que precisa de ombros, um tempo que precisa da possibilidade de força.

Por um lado, podemos considerar uma poesia marcadamente realista – «[E]screvemos uma história hiper-real» (Nuno Brito, sem grande sentido de ajuste à composição em causa [trata-se, mais, de um índice ‘metapoético’]) –, assinalada por marcas que enviam para um quotidiano, mais que presente – «Azul o seu discman e o disco de Los Planetas» (Elena Medel) –, inescapável, como o da tecnologia, caracterizável por uma espécie de micro-realismo, que se detém em ocorrências gastas pelo uso, mas por vezes resgatadas para o poema de forma capaz – «Um cigarro que nos conte das cinzas pulmonares/ em trabalhos de restauro e contrabando./ A paisagem é interior e facciosa em milhares de degraus./ Mesmo quando nos levantamos, descemos» (Ana Salomé). Lembremos, ainda, que Déborah Vukušic foi representada numa antologia chamada Generación Blogger – mais, por certo, do que um mero tique epocal.

Por outro lado, é possível reparar numa poesia que, sem enjeitar uma postura severamente atenta ao concreto, dá passos timoratos em direcção a um certo lirismo digressivo. Modo esse que – ainda marcado indelevelmente por propostas poéticas anteriores – demonstra uma já sólida constituição de fazeres poéticos reconhecíveis, de autor para autor, e distende o discurso poético, dotando-o de uma respiração ao mesmo tempo mais passional e derivativa. «De novo o poeta reflecte sobre a necessidade/ de imprimir no som o relevo de uma certa distorção, em sintonia com as músicas/ que constantemente ouve.» (David Teles Pereira). Por meio de uma irónica autotelia, o poema – servindo-se embora de um artifício canónico – chama, de forma curiosa, a atenção para um componente centrado em si próprio – a (menosprezada) atenção ao som –, mas abre-se ao que o rodeia, sem cair no anedótico. Noutros momentos, a narratividade assoma nos versos, mas é frequente que tal suceda como forma de operar o boicote e de transviar um percurso apenas indiciado – «nem sequer distrair os sinónimos/ que chegam, às vezes demasiado cedo,/ quando o coração é um ódio/ tão natural, uma forma de pedir/ que não contem mais connosco» (Diogo Vaz Pinto). Por outro lado, pense-se na desmontagem de mecanismos como o da descrição – «Lá fora,/ árvores entorpecidas de jardins/ que podiam não existir, ruas que levam/ por um suave desencanto/ e animais desses/ de beira de estrada.» Não se trata já meramente de considerar que a apresentação poética do referente se tolda com a marca do sujeito, mas antes que a própria complexidade crescente do real, aliada à busca de simplicidade de expressão, desaguam num tratamento poético particularmente conseguido de uma matéria que, o mais das vezes, redunda no brilho fosco de postais anotados.

Neste espaço editorial desde os primeiros passos marcado por uma rara sobriedade gráfica, um minimalismo de registos visuais que se estende, de resto, aos elementos paratextuais – como se a poesia a si mesmo se valesse, de modo semelhante ao que Apollinaire fez com a pontuação –, deparamos, agora, com o branco. Possível símbolo da síntese da diversidade – que se mantém, todavia –, poderá entrever-se, no cromatismo hiperminimalista da capa, tanto a aporia como o prenúncio de jornadas do maior interesse.

- Hugo Pinto Santos