sexta-feira, 26 de setembro de 2008

«A criatura que alvoroçou os críticos»

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Artigo publicado na edição de 12 de Setembro do Ípsilon
da autoria de Luís Miguel Queirós



Há uma nova geração de poetas portugueses do século XXI?
Informalidade, biografismo, influência dos blogues. Estas são marcas comuns que se podem ir detectando em alguns dos novíssimos poetas portugueses. Devidamente consagrados os nomes mais relevantes dos anos 90, a muito contemporânea ânsia de descobrir novos talentos começava já a pedir sangue novo, ou novíssimo. Daí, talvez, o entusiasmo crítico com que foi acolhida uma nova revista de poesia, a “Criatura”. Mas é cedo para se falar de uma nova geração.


O Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa lançou recentemente uma revista chamada "Criatura", cujo segundo número está já no prelo e deverá sair em meados deste mês.
O aparecimento de mais uma revista literária ligada a grupos de estudantes universitários não é coisa que costume abalar os meios literários ou desinquietar os críticos. Mas o nascimento desta "Criatura" foi quase imediatamente saudada, respectivamente no "Jornal de Letras" e no "Expresso", por Nuno Júdice e Manuel de Freitas. Reconheça-se que o franco entusiasmo que a revista provocou em Júdice não teve um paralelo exacto no cauteloso elogio que Freitas lhe endereçou, mas, para quem anda mais ou menos atento às discussões em torno da poesia portuguesa actual, o consenso entre estes dois poetas e críticos, mesmo sendo relativo, é suficientemente insólito para despertar a curiosidade. Dado o exíguo espaço que a imprensa hoje concede à crítica de poesia, e o reduzido número dos que a praticam regularmente e com audiência significativa, sugerir que estes dois votos favoráveis equivalem a uma consagração não é necessariamente uma ironia.
Devemos, pois, concluir que está aqui o embrião de uma nova geração de poetas, com qualidade bastante para se lhes ir prestando atenção e que, ao mesmo tempo, tragam algo de substantivamente diferente, face ao que tinham sido as propostas mais interessantes surgidas a partir de meados da década de 90? A resposta óbvia é a de que ainda é cedo para responder, se não para perguntar. Mas se quisermos mesmo lançar palpites, uma resposta prudente poderia ser esta: provavelmente não, mas...
Comecemos pela negativa, antes de passarmos à adversativa. Desde logo, o que se entende por novos poetas? É certo que a generalidade dos poetas aqui representados não publicou livros, embora vários tenham textos em revistas ou na Internet. Mas como "Criatura" não indica datas de nascimento, não é seguro que sejam todos poetas muito novos. Por outro lado, embora a revista dê bastante espaço a cada colaborador, as amostras individuais são demasiado escassas para que se possam arriscar juízos com algum fundamento. Alguns destes poetas podem nunca mais escrever nada, outros porventura engrossarão a vasta legião dos vates justa ou injustamente ignorados, um ou outro pode tornar-se uma curiosidade de culto e talvez algum venha a tornar-se um poeta significativo. Finalmente, não há aqui nenhum autor cujos poemas sejam de tal modo excepcionais que nos sintamos dispensados de manter um mínimo de circunspecção crítica.

Mas...
Agora, o mas... Parece inegável que a qualidade média dos poemas de "Criatura", tendo em conta que a maior parte dos autores será bastante jovem, é francamente invulgar. Muitos padecem, como seria de esperar, de fragilidades de construção formal, não menos exigível em quem aparentemente abdica dela do que em quem se propõe escrever um soneto em decassílabos heróicos. Mas boa parte destes poetas tem coisas a dizer e di-las com uma energia que prende o leitor, o que é já bastante mais do que se pode afirmar de um número considerável de maçadores em verso com livros publicados.
Há, sobretudo, dois nomes que parecem destacar-se, e que integram o núcleo que dirige a revista: Diogo Vaz Pinto e David Teles Pereira. Um juízo partilhado pelo crítico António Guerreiro do "Expresso", que afirma terem sido estes os autores que o "interessaram mais", e pela ensaísta Rosa Maria Martelo, a quem também "impressionaram particularmente". Para Martelo, os textos de David Teles Pereira "são talvez os que melhor apontam o dedo à desumanidade democrática que se tem vindo a instalar no mundo em que vivemos", aqueles onde "melhor se percebe o presente desencantado dos filhos da geração que viveu o 25 de Abril e que nele viu uma efectiva possibilidade de justiça." A ensaísta, salientando que ainda só é possível lançar hipóteses, admite que este seja um traço de afinidade com "alguma da poesia que se tem escrito desde meados de 90", e lembra autores como José Miguel Silva, Rui Pires Cabral, Manuel de Freitas ou Alexandre Nave. Poetas que, defende, "sem que isso implique qualquer panfletarismo, reagem ao cinismo de um mundo onde, cada vez mais, os seres humanos são usados como coisas descartáveis, em nome de uma produtividade e de um consumismo obtusos cuja relação com o bem-estar social se entende cada vez menos".
Mas há um aspecto em que poetas como Diogo Vaz Pinto e David Teles Pereira, ambos nascidos em 1985, talvez se distingam destes seus antecessores. Se uns e outros "parecem fazer colidir a tradição poética moderna com a experiência vivencial presente, como se a vissem de um ângulo novo" - para usar uma expressão de Martelo -, o modo como estes novos poetas dialogam com os autores a quem chamamos modernos sugere uma distância que não se sente, por exemplo, em Freitas ou José Miguel Silva. Nestes poemas, "Camões não parece estar mais distante do que Sena ou Pessoa", arrisca Martelo. "Cesário, Rilke, ou mesmo Celan, todos surgem aqui como diferentes faces de um passado, do qual estes autores talvez já não separem tão nitidamente a tradição moderna."
O poema de Diogo Vaz Pinto "O Outro", que os leitores só irão poder ler no próximo número de "Criatura", mas de que adiantamos os primeiros versos, pode ser um bom exemplo, no modo como dialoga com Cesário: "Ao entardecer as ruas deixam-se atingir/ pelo que quiseres. Compassivas, legendadas/ para um ameno português, enredam-se/ e vão falindo pelas linhas tortas/ de uma subserviência sentimental."
Já em David Teles Pereira, leia-se, no número de estreia de "Criatura", a sua assumida adaptação de um célebre poema de Celan: "Todesfuge". Que poeta com mais de, digamos, 40 anos, se atreveria a adaptar Celan às suas próprias circunstâncias, e ainda converteria as simbólicas Magarete e Sulamith numas enigmáticas Leni e Sophia?

Afinal, é mesmo verdade
Diogo Vaz Pinto e David Teles Pereira são os primeiros a duvidar de que "Criatura" corporize o aparecimento de uma nova geração. "Para haver uma 'nova poesia' tinha que haver alguma novidade partilhada e isso eu não sei se há", diz Diogo. David concorda que o que até agora escreveram "não corresponde a uma nova poesia". Mas também se adivinha que pode ter essa ambição: "Claro que tanto eu como o Diogo partilhamos aquele desejo poundiano do 'make it new', mas não é ainda uma posição de conjunto que nos diferencie de forma tão marcada da geração que nos antecedeu."
Um e outro admitem ter como referências vários poetas dos anos 90. Diogo cita Manuel de Freitas, José Miguel Silva, Rui Pires Cabral, Jorge Gomes Miranda e Carlos Bessa, precisando que os três primeiros são os que, neste momento, o influenciam mais. "Há poetas dessa geração de quem aproveito coisas tão simples como sugestões de bandas e músicas, filmes ou destinos", diz. Também David afirma que muitas das suas referências se "encontram nessa geração e, em especial, naqueles que participam regularmente na 'Averno'" (a editora de Manuel de Freitas e Inês Dias).
Na poesia estrangeira, as afinidades electivas de Diogo vão para "a poesia histérica de Ginsberg, as confissões deprimidas de Anne Sexton e a graciosa grosseria de Bukowski", aos quais acrescenta "um poeta americano ainda vivo que brinca com a poesia como um mestre e tem poemas fabulosos, Billy Collins", e ainda Ted Hughes, Larkin e poetas espanhóis como Panero, Biedma, Cilleruelo ou Diego Doncel. David acrescenta a Ginsberg mais dois nomes da geração beat, Gregory Corso e Kerouac, e cita Rilke, Eliot, Pound, Rimbaud, Celan e Sylvia Plath. Ultimamente, diz, tem lido "alguns clássicos", como Dante", e também Milton, Ovídio, Anacreonte e Safo.
Já no século XX português, David refere Ruy Belo, Al Berto e António Franco Alexandre. Diogo partilha do entusiasmo pelos dois primeiros e acrescenta Sena, Joaquim Manuel Magalhães, Assis Pacheco e António José Forte. "São obras onde procuro e encontro essa tal força da poesia portuguesa de que tanto nos falavam na escola e eu achava que era programa; afinal, é mesmo verdade".