quarta-feira, 9 de julho de 2008

Sou daqueles que

Sou da geração dos que decidiram fazer
poemas depois de ler Lobo Antunes.
Sou da geração dos que vivem a guerra
diária contra vasos de flores de plástico
engomadas como os sorrisos que tentam
substituir, mais falsas que a preocupação
pelo bem-estar de um dente que imitam;
sou dos que vivem a guerra diária contra
a desordem no linho sulcado de suor e
vincos sem sono. Sou dos que antecipam
a velhice por preferirem trocar os nomes
dos filmes a não ver sempre os mesmos.
Dos que estão na segurança tépida
da casa como no calor polvoroso da guerra:
sozinhos sem saber onde pôr as mãos e apontar
com igual insensatez ironias e metralhadoras
de fabrico israelita; dos que não conferem duas
vezes o canhoto do espelho, dos que não levantam
a tampa da sanita nem espremem por baixo
o tubo de pasta dentífrica. Sou dos que se colam
ao chão malgrado da sua idade e formação
para ouvir conversas de criadas com pobres de
pedir, animais domésticos de tias etéreas que
lhes colocam coleiras, açaimes e guizos. Sou
dos que chegam não de-longe, mas de-malas vazias
esse território obscuro conhecido dos marinheiros e dos
caixeiros-viajantes de onde trazemos o forro
verde da bagagem embrulhado no cotão dos
bolsos vazios e a vontade férrea de reunir neles
o conhecimento trapaceiro dos auto-didactas.
Sou dos que em casa como na guerra de melícias
aguardam a falível certeza de um palpite e
que recebem em retorno emboscadas a cada
canto da casa: candeeiros que não conheço
dobram-se sobre objectos antigos desfigurando-os
ou as criadas novas que por amor ao avental,
puro profissionalismo,
varrem para o lixo cuecas sujas fotos memórias
da alvura das coxas de certa cozinheira da avó
bem como livros e algumas folhas soltas. Eis-me
emboscado no território que era meu antes de
sair daqui em avião tipo carregador-de-galinhas
direcção a uma África que me mijava na cara e se ria
mas que urgia defender-se como nossa. Sou dos
que não acreditam que se possa mijar na cara de quem
se ama.

Tenho talvez quarenta anos uma dor nas costas
e uma filha para cada divórcio, sou talvez um deslocado,
vim para a mansarda morar mais o meu colchão que
é feito de imagens em sffumato de oficiais negros
a reunir tropas e tripas num mesmo lado da messe,
e para cá subo após insistir com um cigarro na
fechadura e estranhar de ver a porta permanecer
fechada. E é nesta mansarda que durmo não durmo
o sono leve e perigoso daqueles que decidiram escrever
poemas depois de ler Lobo Antunes.


António Ramos Pereira