segunda-feira, 16 de junho de 2008

Para que Nada Conste

Os teus olhos são as mais duradouras flores da chuva.
Digo isto sem ser por erotismo.
Digo isto porque ainda não te cancelei o meu coração.
Estou a falar contigo, é quinta-feira, um ano qualquer.

Sentei-me, outro dia, numa pedra da cidade.
Testemunhei o tempo e a mortandade da beleza.
Vi passar uma senhora com a memória à coleira.
Topei perfeitamente as palavras pensadas dentro das pessoas.

Exerço o meu ministério vivente contra o futuro.
Um dia teremos sido – e nada constará de nós.
Cavalheiros vestidos de preto sentinelam o rio.
Um comboio é uma atitude de ferro.

A tua pele muito branca vai ser o fato de noiva
para outro homem, quando eu mais não puder
amar, nem chamar duradouras flores pluviais
aos teus olhos que pensam como duas bocas azuis.

Traz-me um pouco de água, lava-me as mãos
que sujei na guerra, nos bares, em outras mulheres.
Desenha-me um anjo a carvão na neve.
Deixa-me ir ver o futebol – ou então as árvores.

Estou ainda muito aonde não fui.
Invoco os meus mínimos deuses de terracota.
Crianças bailam num pátio de cavalos.
O carteiro traz-nos palavras numerais, frias.

Se pudesse, nunca mais te morreria.
Nunca teria falado com ninguém para que ouviras.
Dou-te estes campos de arroz, estas cegonhas:
sou o teu homem, sou, como diz aquele livro,

um saco de vísceras apertado em cima por um olhar.

Fui há dias a Lisboa, trouxe de lá as mãos queimadas.
Vi lá muitos livros, alguns eram pessoas.
Entrei num café, conversei sobre bacalhau e economia
com o senhor do balcão, que era Martins

como tantos outros.
Depois, anoiteceu comigo em baixo,
vi passar Santarém, Albergaria dos Doze,
Adémia, Pampilhosa, era estranho estar tão vivo.

Sentei-me num sítio fresco, trouxeram-me sopa quente.
Partilhei o pão de milho com quatro pombas.
Devo ter sido vagamente feliz na contramão: a luz
era o mais buliçoso cristal da noite.

Agora faço isto amanhã.
És o melhor dos meus ontens.
E por puro amor púrpuro
a azul te digo isto, branca.


Daniel Abrunheiro