quinta-feira, 29 de maio de 2008

Veludo formol e tinta

Para a Ana

Os nossos mortos estão menos mortos
Do que os veludos que os embrulham
A rigidez fria dos corpos vem nos livros
Não nos corpos, a língua que trazemos,
como lentes de contacto mas opacas,
de tanto se valer da cor cegou-nos,
De tanto cantar olhos vítreos, alvas faces
Dedos a acorrentar fios de terços ou de
Madeixas de cabelo – a língua de tanto
Cantar o suplício graficamente longo
De quem morde as extremidades até
Ao sangue para que as sinta, fechou-nos
Os ouvidos aos gemidos reais da cama
De ferro e da criatura de carne que já
Não geme, já exangue, a depenar-se,
a mutilar-se, a multiplicar-se, enfim,
na árdua, infrutífera tarefa: mostrar
que o cancro a velhice o fim da memória
não terminam tudo, não consomem tudo.

A língua fala-nos dos mortos, mas são
Mortos de veludo, formol e muita tinta.


António Ramos Pereira