sábado, 19 de abril de 2008

Expresso Actual, 19 Abr 2008. Page 49

Expresso Actual
19 Abr 2008


Apreciação crítica da revista «criatura» por Manuel de Freitas
















ENTRE VÍRGULAS

Uma revista de poesia que parece não querer ser como as outras

por Manuel de Freitas

Num tempo em que inúmeras revistas literárias recorrem a apoios institucionais, não deixa de constituir uma boa surpresa o aparecimento de «Criatura». Em vez dos sonoros carimbos mecenáticos, esta revista, «organizada pelo Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa», limita-se a referir, no «cólofon», o apoio da Associação Académica. Em vez da exuberância gráfica com que tantos outros projectos têm procurado afirmar-se, «Criatura» assume-se, logo na capa, como um acto extremo de despojamento: fundo negro, onde apenas se pode ler o nome da revista, em branco minúsculo, mas incisivo. Por fim, em vez das habituais «overdoses» de fotografia ou ilustração, esta revista aposta unicamente no(s) texto(s) e numa paginação sóbria e eficaz.

Tudo isto, reconheçamos, não seria motivo suficiente para nos determos neste gesto inaugural. Acontece, porém, que a vontade de diferença ou de distanciamento atravessa, de um modo por vezes notável, alguns dos poemas aqui reunidos. Percebe-se, sem dificuldade, que estamos quase sempre perante autores muito jovens, não faltando certos ecos adolescentes. E é provável — perdoe-se a crueza do reparo — que o que para uns serão os primeiros e auspiciosos passos possa vir a ser, para outros, um mero e inconsequente desabafo. Mas isso são coisas que ninguém (nem sequer os próprios) é agora capaz de prever. O que importa, no fundo, é que «Criatura» nos consiga fazer chegar timbres tão diversos como os de Rita Branco Jardim, Sara F. Costa ou Susana Almeida — aos quais se vem juntar, com mérito, a voz menos desconhecida de José Carlos Barros. A «qualidade» literária — é escusado dizer — oscila. Ainda assim, convém ficarmos desde já atentos à raiva narcísica de David Teles Pereira, ao sóbrio desencanto de Diogo Vaz Pinto, ou ao intimismo áspero de Maria Sousa, autora destes versos saudavelmente displicentes: «Depois de te dizer que a melancolia já não se usa/ fumo um cigarro e invento um abandono» (pág. 72).


Aquém ou além da singularidade com que muitos destes poetas nos confrontam, é de sublinhar um amargo desconforto geracional, evidente em Beatriz Hierro Lopes («Definidos pelas conquistas tecnológicas com as quais crescemos somos rotulados como 'Geração Y', 'Geração Net' e 'Geração Boomerang'» — pág. 30), mas igualmente visível em David Teles Pereira («Sou filho daqueles que lutaram no dia 25 de Abril de 1974/ Para que hoje eu possa ficar em casa, aborrecido, a escrever sobre/ Aquilo que nunca vou ser» — pág. 49), ou em Diogo Vaz Pinto («Houve quem tenha proposto uma geração y/ depois da x e depois de todas as outras que nos largaram/ à beira do precipício» — pág. 58). Embora saibamos que a poesia só muito raramente vive de pulsões geracionais (pois é feita, recorde-se, «contra todos e por um só»), torna-se difícil ficarmos indiferentes ao desconsolo veemente que estas páginas nos transmitem. A cumplicidade entre os intervenientes vai ao ponto de o volume terminar com uma anónima «Nota Final» em que se diz que «a criatura/ caminha sobre/ as patas que tem/ vírgulas na indiscrição/ da realidade ficcional/ ou ficção real/ que cada um inventa/ para si» (pág. 110). Seja qual for o caminho de «cada um», não oferece dúvida que é poeticamente mais satisfatório comprar esta revista do que o último livro de um desses «tipos/ cansados de se publicarem/ e de ninguém ter paciência para os ler» (pág. 59).