They took your life apart and called your failures art
Elliott Smith
Elliott Smith
Como pode uma cidade costeira permanecer alheia
ao ciclo das marés, tal e qual sereia de plástico
demasiado suspensa na programação televisiva das
algas como para prestar atenção a um Transatlântico
cheio de marinheiros encorpados para quem o amor
nunca foi mais do que um fenómeno natural
apenas visível em alto-mar;
como pode um arcanjo manter a sua beleza intacta
depois de passar uma noite inteira em casas de banho
impecavelmente desinfectadas a instigar as células à morte
por excesso de velocidade na auto-estrada cerebral;
como pode a polícia deter alguém que substitui
os olhos por um par de óculos de sol e
incentiva o uso não académico da arte de publicar
propaganda erótica e socialista;
como pode um sonho barricar a loucura num quarto
forrado a papel de parede com retratos de pequenos
querubins barrocos e anafados, encostando toda
a mobília existencial e simbólica à porta;
como pode um corpo jantar numa Supernova
onde da ementa consta o próprio cosmos servido
com um salteado de estrelas a dançar;
como pode o homem sentir-se verdadeiramente livre num
mundo em que nem os deuses sabem quem, se gritassem,
os atenderia nas repartições administrativas dos anjos;
como pode todo o universo expandir-se e regenerar-se
em orgasmos múltiplos e consecutivos sem
precisar de beber uma lata de Redbull
ou de Coca-Cola para recuperar o vigor sexual;
como pode um génio criativo agonizar num hospital
com uma overdose de chocolate e ácidos depois
de, num esforço sobre-humano, ter entendido
como é perfeita a engrenagem da morte;
como pode o vento de leste provocar repentinamente
um ataque de histeria colectiva entre todos os praticantes
de uma modalidade Zen que só esteve na moda
entre Janeiro e Março de 2007;
como podem os dias que nos tocaram viver
promover tanta excitação humana quanto o
o último snuff que co-produzi na minha cave;
como pode um coração despedaçado vaguear tão
linearmente por entres as tonturas da noite sem ser
recolhido por um programa municipal de apoio
a quem padece de sentimento poético;
como pode a realidade ser um exército de ideologia
platónica que arma a sua frente de combate com
cargas de radioactivíssimos silêncios, não
deixando espaço para novos heróis;
como pode o meu primeiro amor ter morrido a
21 de Outubro de 2003 com uma borboleta desenhada
a sangue no lugar em que crescem os pêlos do peito;
como pode a maquinaria de Deus descer sobre
a terra e entoar cânticos apocalípticos tão aborrecidos
quanto os que se ouvem nas escadas do Metro:
Deus é de longe o pedinte menos talentoso de Lisboa;
como pode um país engrossar com tantas almas
as fileiras do purgatório, onde, à falta de luz,
são os próprios fantasmas que brilham;
como podem os deuses mais reais vestir pétalas
de tom rosa-injectado para ensaiar os mais espectaculares
suicídios nunca antes vistos no espaço de quatro assoalhadas;
como pode toda uma geração ser tão dramática quanto
apática, pudente e, não obstante, sórdida, invertida,
convertida, uivante ou tão pouco ruidosa;
como pode um homem acordar em plena Avenida da Liberdade,
num banco de madeira e dar-se conta de que tem o poder
de recriar a oscilação metafórica dos semáforos;
como podem os meus dedos pintar um retrato Elizabeth Siddal,
cuja memória antes tivesse sido morta pelas águas, como Ofélia,
e todo genocídio cósmico resultaria com maior perfeição;
como pode um tesão imenso arder no peito tanto
e ao mesmo tempo não ver mais do que aquilo que há
séculos já estava escrito a vómito no dardos da madrugada;
como pode uma mão oculta tocar até nos mais
fundos precipícios da boca e retirar de lá
dor suficiente para invocar um dos Senhores da Luz;
como pode um teatro recém-aberto em zona franca
licitar a modernidade num palco, como se ela fosse
a escrava oficial deste novo Século;
como pode um poeta prender fogo ao próprio
corpo com velas e carburante e, depois,
fechar-se dentro dum roupeiro em êxtase de raiva,
sem ser confundido com uma secreta iniciação;
como pode uma alucinação levar multidões
a aderir à forma arcaica do verso poético,
recriado a partir dum cocktail de ADN dos cinco
poetas mais a vontade nisso de estarem mortos;
como podem as mentes mais brilhantes da minha geração
ainda ser destruídas pela loucura, quando escrevem poemas
incomparavelmente melhores que os já escritos, quando
não têm as arcas cheias de poemas cuja genialidade
foi judicialmente declarada.
Ontem encontrei o Kerouac à espera de boleia ou de
alcançar o Nirvana. Não parei o carro;
como pode um poema ser intenso e erguer-se
muito acima de todo este silêncio para arquitectar
um cântico neste campo de àrvores verticalmente
dispostas em homenagem à ruína dum sonho,
sem espaço suficiente para alargar a morte?
David Teles Pereira