quarta-feira, 29 de junho de 2011

«Criatura [não] é movimento». eppur si muove.


por Rita Taborda Duarte
in Relâmpago n.º27

Criatura

Nº5, Outubro, 2010


Criatura, já no seu quinto número, é uma revista de poesia com uma concepção muito particular, cuja simplicidade e sobriedade, no que toca à organização, surge como parte de um conceito geral bem mais reflectido, que transforma a diversidade dos autores apresentados num todo coeso e convincente.

É na ambiguidade entre a revista e a antologia que a publicação se move. Relegada para a página de rosto, temos a indicação do número do volume, assim como da data (mês e ano, como tradicionalmente cabe a uma publicação do género). À partida, pareceria não existir um editorial a assumir um intuito programático, ou pelo menos a estipular a sua ausência, como na tradição modernista, por exemplo; os poetas apresentam-se em simples sucessão, sem indicações bio-bibliográficas, sem índice ou explicações, sem qualquer explicitação de ordem ou organização do conjunto que se tem em mãos, salvaguardando a excepção dos dois autores traduzidos e que se fazem acompanhar por uma breve nota curricular. Poetas reconhecidos do panorama poético português (António Barahona ou Jaime Rocha) convivem com novos autores, já editados, maoritariamente fora mainstream (existe um mainstream para a poesia?), e poetas inéditos, desconhecidos, e que terão aqui a sua estreia editorial. A presença de poetas espanhóis (ou que escrevem maioritariamente em castelhano), como Roger Wolfe e Jesús Jimenez Domínguez, alarga este número, como aliás o anterior, a um diálogo poético que procura esbater fronteiras, esforço que reconhecêramos também em publicações dos finais dos anos noventa como Hablar/ Falar de Poesia ou Boca Bilingue, por exemplo, ou até a muito recente Suroeste que alarga a colaboração, também, ao texto ficcional. A grande diferença é que, em Criatura, estes autores são traduzidos na ausência do texto original, transformando, muito subtilmente, a revista num volume misto de poesia e tradução.

É sabido que as revistas literárias «constituem, no dizer de Paul Valéry, um laboratório onde se experimentam novas ideias e formas, onde se confrontam as mundividências e se ensaiam outras maneiras de as explicitar»[1]. Também aqui, mesmo camuflado numa superfície lisa em que só os textos parecem sobressair, se experimenta relações da poesia com a vida e suas razões (necessariamente irracionais) de ser. A poesia surge como criatura quase autónoma do criador, mas a ele intimamente ligada (não é de uma poesia impessoal que se trata): «Como uma sombra que projectaste e que ganhou vontade, a criatura ir-se-á recortando contra a luz e movendo-se entre tempo perdido, num grito sem voz, repetindo-se para a eternidade como uma espécie que se equilibrou entre a loucura e a beleza», escrevia-se no número 4, com uma certa aura que convoca reminiscências românticas.

A simplicidade na organização do volume é sublinhada por um grafismo despojado e discreto que acaba por se tornar expressivo (na capa a negro, só o título a branco): nada do que é novo surge isoladamente, trazendo consigo, por afirmação ou negação, por acumulação ou disjunção, o peso das criações anteriores, as antepassadas, já distantes, que sobrevivem somente na memória e as contemporâneas, com quem se medem ombro a ombro, para conquistarem o seu lugar na actualidade. E assim, num breve apontamento, é difícil não traçar um paralelo, opondo o conceito desta publicação e o de outras revistas de poesia aparecidas (algumas reaparecidas, até) nos finais da década de noventa. Aí, um nítido empenho vanguardista buscava conciliar texto e imagem, num esforço gráfico muito assumido, em que por vezes o próprio design aglutinava o discurso poético. As revistas Bíblia, Número, Boomerang ou Erros são disto exemplo, assim como a Ópio, que, como Criatura, teve também o seu gérmen no contexto universitário (Núcleo Cultural da Associação de Estudantes da Faculdade de Letras de Lisboa): Como se indica na ficha técnica Criatura é “organizado pelo Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, com o apoio da Associação Académica”. Assim vem escrito, sem mais justificações.

Apesar de toda esta superfície de uma revista que se quer mais texto e menos revista, enquanto aparato editorial, Criatura tem, não um programa, mas um projecto que a percorre e marca genuinamente, até mais pela postura crítica que se sobrepõe, do que pelos poemas que encerra. Não tendo um editorial, identificado expressamente, acrescenta aos poemas uma nota introdutória, sem título, nem assinatura, deduzindo-se, portanto, que seja da responsabilidade da direcção: Ana M. P. Antunes, David Teles Pereira e Diogo Vaz Pinto; trata-se, aliás, de um pequeno poema em prosa, sendo também, em simultâneo, uma subtil injunção programática, que discretamente se firma à cabeça da publicação. E numa calculada circularidade, um poema intitulado Nota Final fecha o volume, mas fá-lo de modo tão subtil e imperceptível que, se não se desse o caso de este título «Nota Final», se repetir de número para número da revista, facilmente poderia acontecer atribuir-se o texto, distraidamente, ao último autor coligido na antologia, perdendo-se o seu significado geral para a recolha poética.

Existe, afinal, um fundo projectado, pelo menos uma concepção de poesia que não se dá por outro meio que não o da expressão literária: a poesia como forma natural de referir a poesia. Não é uma ideia nova, mas ganha aqui fôlego, por não surgir como manifesto ou programa, mas por se ostentar no próprio formato da colectânea como facto, como algo in fieri. Os dois textos (a prosa introdutória e o poema «nota final») propõem um percurso, uma linhagem, que condiciona o critério de selecção dos poemas; corre, assim, no subtexto da revista um esboço de reflexão teórica, camuflado por um pudor em lhe acrescentar algo que exceda o próprio discurso poético, mascarando e refreando todo impulso crítico com as vestes do poema, ou, se quisermos usar o jargão teórico, transformando o que bem poderia ser paratexto em texto, como se a cada momento se reafirmasse: a poesia basta-se a si mesma.

Leia-se em parte esse texto inicial, espécie de arte poética, ou prefácio de feição metafórica, que abre o volume:

Absoluta na sua tensão mais rudimentar, a escrita é a única forma directa de agredir o vazio[…]. Obsessiva e perversa: uma matemática que adora o erro; uma investigação que se envaidece com o caos e o desentendimento que produz. Na pura rejeição de qualquer dieta estética ou formal, a criatura é movimento, espírito de uma época que ora se fascina ora se desilude para começar de novo. É vária. É um tremendo gozo colectivo e um horror. Na escrita encontramos possivelmente a única medida real para a vida. Escreve.

Sobressai, nestas palavras, a sombra de um Romantismo perene, não programático, que retoma os grandes temas, o belo e o terrível ou a relação, sempre labiríntica, mas ainda assim relação, entre poesia e vida; feições que, por vezes, nem todos os poemas assumem com o mesmo ímpeto. Desdenha-se aqui, como se sugeria na «Nota Final» do número anterior da revista, de uma arte de «arrotos místicos», para se propor «em cada verso/ um nó de sangue/por uma poesia que/ encha a boca com o mundo». E não será por acaso que se insiste na ambiguidade gerada pela polissemia, ao repetir-se que «criatura é movimento/ olhar intenso/ um tremor encantado colhendo imagens (…)» mas «fora/longe de todos os círculos surdos/de bordadeiras estúpidas//ralhando a oca literatice dentes/podres que aos pés lhes caem/ e por aí ficam(…)».

Podemos dizer que nos poemas de David Teles Pereira e de Diogo Vaz Pinto e de um modo diferente, com um diverso impacto verbal e alcance imagético, em textos de Rui Caeiro e Rui Pedro Gonçalves ou Tiago Araújo encontramos, de facto, uma linha poética que busca resgatar às palavras «este fulgor/que à própria vida/oferece/uma medida». Impressões do quotidiano, vivências biográficas, percursos trilhados tentam ser agarrados com vigor da palavra poética, pela força da imagem verbal, que transforma e desacata o que parecia ser o mundo comum, o quotidiano reconhecível. Assim os poemas de Diogo Vaz Pinto, que num ou noutro momento convocam, mesmo de longe, uma toada decadentistas: «Nas ruas o ar move um lerdo/registo, flanando, pega o que quer. / Uma ideia metida com épocas/passadas, mais bicicletas e miúdos/ escanzelados, a minúscula feira com as/barracas de quinquilharia, as merdas/ regionais e o enjoo dos carrosséis/ao som da macarena./ um cego de mão estendida, a soprar uma flauta como se fora um apito.». Mais adiante, um poema intitulado «Outra Educação» parece corresponder aos intuitos insinuados para o processo poético presentes no texto introdutório: «A poesia é o menos. Serve/se der com o ritmo e souber guiar/essa nuvens ralas/ os rebanhos do céu,/ suster o barulhinho intermitente/desta chuva de Agosto nos vidros,/ o vento gemendo de gozo e a respiração/funda do mar.». Mais adiante no final do mesmo poema redunda um esboço de arte poética: «(…) eu escrevo./Quer dizer que abro cortes na ponta/dos dedos, mergulho-os como isco/no escuro, e aguardo.».

É uma revista que procura, mesmo que de modo difuso, um projecto de unidade. E, ao percorrer-se esparsamente os textos, sente-se o espectro de Herberto Helder a assombrar o processo de escrita, não ainda conflituoso, como talvez se quereria, lembrando H. Bloom, mas como uma espécie de busca ou horizonte reverencial.

Os poemas de António Barahona (assinando aqui Muhammad Abdur Rashid Ashraf) abrem a colectânea com um questionar da tensão poética acrescido do distanciamento irónico que lhe é reconhecido, atingindo uma fortíssima coesão entre pulsão criadora, ritmo, sonoridade e construção de sentidos. O soneto «Pulsação», que cito na íntegra, será disto um muito feliz exemplo: «Perene é ser soneto: eis do futuro,/ essa canção com oitocentos anos:/sábios mil sons ecoam bons sopranos,/no timbre d’árias tensas de ouro puro//Catorze versos a fundir degraus/(ligas de cobre e prata e elixir)/refeitos pra durar até que expire/seu último cantor à flor do caos.//Perene é ser soneto, que reside/ na cópia essencial do verbo:/tal como a roda, o cubo e o triângulo,//vem inscrito no código soberbo/de quem tece um casulo e sente livre/ o sopro do seu sangue num coágulo.».

Por outro lado, a sequência de Jaime Rocha, com a concisão de um lirismo muito contido, que arrasta consigo um forte escrúpulo cultural e uma observação refigurante do mundo, sempre serena, activa, mas sem a aspereza impetuosa da verve e das imagens, sobressai também do que parece ser, ainda que vagamente, o fio condutor da publicação. Veja-se o poema seis, da sequência «As Aves»: «O rio seca. Ouvem-se sirenes./ Os barcos apitam como se/tivessem chegado os dias de/festa. Os pedreiros não têm/braços para todo o lixo. Nada/ distingue as ruas de um grande/vale de narcisos.»

Na impossibilidade de referir todos os poetas presentes (cerca de quinze) saliente-se ainda que de raspão, a originalidade do tom poético dos poemas de Margarida Vale de Gato, com uma feição feminista que retorce a tradição formal, e se exibe como força provocatória e prenhe de ironia: «Um homem pode ser/ discricionário/encarnar o mal/ e não olhar a quem;/há certos que se mandam para o mar/ e firmam fama de artistas-/sei de cor a epopeia/venda-se o olho sendo a vista dura.//Um homem inclusivamente pode/pular na lua/ e urinar no espaço/e reluzir ao léu.//O que não pode um homem/segura a dama sua.»

Para finalizar uma boa descoberta: a poesia de Roger Wolfe, nascido em 1962, traduzida por «Luís Filipe Parrado» a convocar para as páginas da revista «Toda esta poesia que nunca cabe num poema.», assim como o humor desarmante de uma lógica que se constrói por dentro do poema, mas que pode atingir, com lucidez e acuidade, o centro nevrálgico do humano: «(…) suponho que o amor/deve ser/como esses raríssimos instantes/de felicidade:/se por um momento /os vives/eu diria/que não é conveniente/andar a perder tempo/com poemas.».

É este um bom exemplo de uma colectânea que inclui textos de grande qualidade e que ganha forma e consistência enquanto conjunto, mesmo na sua diversidade. É um volume que fica e, mesmo que não se preste a representar uma muito definida linha poética, estilística, distingue-se pelo menos por dar a conhecer (e a reconhecer) duas mãos cheias de bons poetas que, na sua maioria, parecem ter suficiente impulso para deixar pelo menos uma marca no contexto literário actual. No entanto, o destino da poesia é imprevisível, já que um poema, citando um dos textos de Roger Wolfe, é «Artigo não sujeito à legislação em vigor», «alguns funcionam/outros não./Se o que queres/é uma garantia,/ então compra um televisor.».



[1] Daniel Pires, Dicionário das revistas literárias do século XX, Lisboa, Contexto Editora, 1986, p.19