terça-feira, 17 de junho de 2008

NOTA FINAL (segundo número)

sempre tão pouco se acrescenta

só isto que por vezes é apenas
um sinal de presença, nem tanto
uma verdadeira inspiração
mas simplesmente o movimento
de uma respiração que se distende
na escrita, páginas e páginas
embaciadas e aquilo que escorre
de dentro para fora e ao contrário
num ondear impresso, um litoral
feito do momento onde este verbo
nos vem conjugar

aqui estamos nós
e a criatura que passeia em círculos
sem ter um destino, tem-se tão só
a si mesma, como um gato escuro
que numa noite negra deambula
entre os telhados de vidro da cidade
mas ninguém sabe dele
nem o distingue da noite
e ninguém pode apontá-lo
a não ser que encontre o brilho
nos seus olhos, a forma como fixa
o que o rodeia, a sua divagação
os seus passos sobre o silêncio
as palavras que ficarem e forem
capazes de jurar que ali esteve
como testemunhas num caso
sem importância

porque a poesia
que é disso que se trata
não interessa, não é necessária
não convém nem é útil e também
não precisa que acreditem nela

muitas vezes só finge
e faz-se de importante
fala num tom inflamado, superior
como se iluminasse o escuro
mas depois, como tudo, também se cansa
e fica esquecida, devolvida ao seu lugar
quieta com os quietos que a lêem
com os que, para não estarem só
a matar tempo, a escrevem

da poesia se pode dizer que
nos seus melhores momentos
nos engana, nos distrai, nos alegra
ou emociona e quase consegue
fazer-nos sentir o sentido
que a vida não tem

pertence mais à memória
que à vida

é um projecto de beleza
para além da morte ou da sobrevivência
é o que ultrapassa a sobrevivência
um excesso libertador talvez porque é falso
contra a verdade, o que deve e o que tem de ser
contra tudo isso, contra nós próprios
contra todos e por um só, aquele
que agora se afasta da página
e pensa para si o que quiser